Vamos partir do princípio que o único objetivo dos grandes festivais de verão é proporcionar bons concertos a quem lá vai – artistas e público. Pode parecer uma afirmação demasiado óbvia e sem discussão, mas não é bem assim. Os Festivais de Verão tornaram-se marcas com uma identidade própria afirmada ao longo dos anos, e é claro que alguns puxam mais por um público melómano muito atento ao cartaz, que até é capaz de ir aos concertos “apesar de” serem num festival e outros que se esforçam mais por proporcionar “uma experiência”, um certo ambiente de festa que pode ser vivido, socialmente, sem demasiada atenção a tudo o que se passa nos palcos.
O novíssimo MEO Kalorama, que causou surpresa e estranheza quando foi anunciado há menos de um ano, aproxima-se mais dos que conquistam o público pela construção do cartaz e o alinhamento dos concertos. Essa perceção foi ainda mais acentuada porque, ao ocupar o espaço do Parque da Bela Vista, que muitos associam ao Rock in Rio (que aí acontece desde 2004), saltavam à vista as comparações; sendo a diferença essencial o facto de no Kalorama haver uma presença muito menor do “ruído” de stands de marcas e de espaços de “diversão”. Ocupando menos espaço do Parque do que o Rock in Rio, também a disposição dos palcos marcava a diferença. E o que neles se passava concentrava as atenções.
Julgando o novo Kalorama por essa capacidade de criar condições para que bons concertos aconteçam, o balanço é claramente positivo (apesar de algumas falhas, já lá vamos). Muitos dos nomes anunciados criavam altas expectativas, e ao mesmo tempo davam a segurança de se saber que havia ali poderosas máquinas de fazer grandes concertos em ação.
Os Arctic Monkeys foram os que mais funcionaram como polo de atração do público que esgotou a lotação do segundo dia do festival. Aliás, Artur Peixoto, da House of Fun, o principal nome por detrás do Kalorama, admitiu que uma razão para avançar com o novo festival já em 2022, em vez de esperar por 2023, foi saber da disponibilidade da banda de Alex Turner. E os Arctic Monkeys não desiludiram a multidão, intergeracional, que ali estava para os ver (a banda de Sheffield consegue ter grandes admiradores muito mais jovens e muito mais velhos do que os seus membros, agora na casa dos 30 anos). Abriram o concerto logo com um grande hit, Do I Wanna Know?, para grande euforia das cerca de 40 mil almas que os esperavam ansiosamente mostrando que estavam ali para agradar, mais do que desafiar. No NOS Alive, em 2018, Alex preferiu assumir mais uma identidade de crooner blasé (na sequência do disco Tranquility Base Hotel & Casino) e mostrar que o lado rocker e mais juvenil da banda tinha ficado lá atrás. Na atual digressão (que antecede o lançamento do álbum The Car, marcado para outubro, que pouco se ouviu em palco) pode-se dizer que os Arctic Monkeys descobriram a fórmula certa: são muito diferentes dos miúdos que, em 2006, lançaram Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not – e sabem-no, e sabem que nós sabemos – mas não estão ali para chatear ninguém e tocam competentemente, e com entusiasmo qb, mesmo que quase sempre disfarçado pela atitude muito brit de impassibilidade, praticamente tudo o que o seu público quer ouvir.
Outro nome a justificar uma grande romaria à Bela Vista foi o de Nick Cave & the Bad Seeds, que há 14 anos não tocavam em Lisboa – onde agora puseram um ponto final na digressão de três meses que fizeram este verão e que, em junho, passou pelo NOS Primavera Sound, no Porto. O músico australiano é, hoje, um caso à parte, na forma como, com quase 65 anos, se entrega a cada concerto e ao seu público. Com aparente facilidade consegue, a partir do primeiro segundo de um concerto de mais de duas horas, fazer-nos sentir que aquela noite é única, que está ali só para nós (e nós alegremente fingimos esquecer que aquele é um ritual repetido noite após noite). A grande força (quase magia) da música ao vivo está toda nos atuais concertos de Nick Cave: nos afetos, emoções e energia que, a cada momento, circula de lá para cá, de cá para lá. Nick Cave precisa destes toques, desta proximidade com o seu público. Se no início da carreira, há mais de 40 anos, essa necessidade era concretizada, sobretudo, numa provocação olhos nos olhos, que muitas vezes chegava a cenas de violência, hoje materializa-se numa verdadeira relação de amor e intimidade. A emoção especial sentida em Lisboa, ponto final da digressão, viu-se no momento em que Nick convidou os excelentes Bad Seeds a saírem dos seus lugares e aproximarem-se, também eles, do seu público (o que não costuma acontecer). Contas feitas, este concerto de Lisboa foi (ainda) melhor e mais intenso do que o que vimos no Porto, em junho.
“Amor” foi também a palavra chave do concerto de The Legendary Tiger Man, na véspera. “Amor” e “rock and roll” numa atuação enérgica para um mar de gente – um mar onde Paulo Furtado fez questão de mergulhar. Imediatamente antes da atuação de Nick Cave no palco principal, foi a vez de Manel Cruz e os Ornatos Violeta afirmarem, também de corpo presente, a grande proximidade com o seu público num concerto intenso. E é bom ver bandas portuguesas a tocarem no palco maior a horas em que já uma multidão está lá para os receber. Isto, sem desprimor para o pequeno palco Futura, onde se viram excelentes concertos, como os de Alice Phoebe Lou, Bruno Pernadas (nota 20 para a qualidade do som dessa pequena orquestra), Meute ou Club Makumba. A capacidade muito limitada de público que cabe no minianfiteatro natural à sua frente pode ser um problema a resolver, mas em nada comprometeu a qualidade das atuações e da excelente qualidade de som no palco mais pequeno do festival.
Mas esta não foi uma primeira edição isenta de contrariedades. A maior delas, beliscou a imagem do festival logo no primeiro dia, quando a atuação de 2Many DJs com Tiga teve que ser interrompida, e cancelada, para não interferir com o som do concerto dos históricos Kraftwerk (para qualquer melómano vê-los ao vivo devia ser uma dessas coisas a fazer pelo menos uma vez na vida) que acontecia à mesma hora. Olhando para o posicionamento dos dois palcos maiores – o MEO e o Colina, sem nenhuma barreira natural ou artificial entre eles – era bastante óbvio que dificilmente poderiam acontecer ali dois concertos em simultâneo. Estranha-se que uma organização com gente tão experiente só se tenha apercebido disso em cima da hora… Também se ouviram queixas quanto à qualidade do som no Palco Colina (especialmente no concerto dos alemães Moderat, que fechou a primeira noite, submergidos em baixos fortíssimos que anulavam outras subtilezas e a voz) e houve, por vezes, filas demasiado grandes na restauração e casas de banho à entrada do festival porque, aparentemente, muitos festivaleiros não se aperceberam que, algo escondida, para lá do horizonte, havia outra área disponível (é fácil assumirmos que nem toda a gente estuda com atenção o mapa dos recintos dos festivais de verão…). O tempo seco (e ameno) foi excelente para a prática festivaleira mas não evitou que o pó fosse, por vezes, incomodativo.
Uma coisa é certa: num ecossistema festivaleiro de verão que parecia estar já demasiado habitado, o Kalorama mostrou que veio para ficar. As datas da edição de 2023 já foram anunciadas – 31 de agosto, 1 e 2 de setembro – mas não se sabe, ainda, se o festival vai continuar a ocupar o Parque da Bela Vista ou se vai encontrar outro lugar em Lisboa. Em cada um dos três dias desta primeira edição passaram, em média, 37 mil espectadores de 50 países.