Ao longo das últimas três décadas, bem se pode dizer que a vida do americano Terry Gilliam, 81 anos, teve momentos muito quixotescos – e nada mais, nada menos, do que pela sua vontade de concretizar um ambicioso filme inspirado no “cavaleiro da triste figura” inventado por Cervantes no século XVII. Tudo começou depois de terminar o filme A Fantástica Aventura do Barão, de 1988. Embalado por esse filme de grande orçamento com um protagonista lunático mergulhado nas mais loucas viagens, missões e aventuras, Terry Gilliam decidiu que queria, também, fazer a sua versão cinematográfica de Dom Quixote e Sancho Pança. “Mas nessa altura ainda nem tinha, realmente, lido o livro, achava que sabia a história do cavaleiro sonhador Dom Quixote, como toda a gente…”, recorda à VISÃO. Depois de passar duas semanas a ler as páginas escritas por Cervantes, chegou sem demora a uma conclusão: “Era impossível fazer um filme adaptando diretamente o livro.” Mas não desistiu do projeto. Nunca o faria.
Épico falhanço
Nos anos 90, o ex-Monty Python Terry Gilliam (era ele o responsável pelas icónicas animações coloridas do mais célebre grupo de humoristas inglês) realizou três longas-metragens: O Rei Pescador, 12 Macacos e Delírio em Las Vegas (adaptação do alucinado livro de Hunter S. Thompson). Com a aproximação do século XXI, decidiu avançar finalmente com a sua velha ideia e foi aí que começou a tomar forma um filme chamado The Man Who Killed Don Quixote (O Homem que Matou Dom Quixote). “Pensei em criar a personagem de um publicitário que viajava no tempo, para o século XVII, porque os publicitários vendem sonhos e o Dom Quixote, simplesmente… sonha!” O guião foi desenvolvido em colaboração com Tony Grisoni e no outono do ano 2000 estava tudo pronto para começar a rodagem com o ator francês Jean Rochefort e Johnny Depp nos principais papéis. Mas as coisas não podiam ter corrido pior na região de Las Bardenas, na Navarra, Espanha: aviões militares sobrevoavam ruidosamente a zona, uma inundação provocou numerosos estragos nos locais das filmagens e, ao quinto dia, o Dom Quixote Jean Rochefort teve de abandonar o projeto com dores lancinantes que praticamente o impediam de andar e montar a cavalo… O falhanço foi tão épico, em apenas uma semana, que resultou mesmo num documentário: Lost in La Mancha, de 2002.
Branco versus Gilliam
Nos anos seguintes, a luta de Gilliam podia assemelhar-se, por vezes, a uma investida contra moinhos de vento… O cancelamento da primeira tentativa séria de fazer o filme trouxe dificuldades na angariação de novos produtores e financiadores. Mas o realizador não ficou parado. Sempre que havia uma luz de esperança no horizonte, voltava ao seu guião. “Levou algum tempo até chegarmos à história como está agora no filme. Passei por tantos produtores, que estávamos sempre a reescrever o guião, para ser algo fresco e ter novidade para nós.” Cerca de dez anos depois da rodagem falhada, o argumento teve uma viragem importante e engenhosa: o filme passar-se-ia na atualidade e não no século XVII. Toby, o tal publicitário e realizador de sucesso, tinha feito um filme de estudante em Espanha contando com a população duma aldeia como atores amadores. O velho sapateiro Javier tinha sido Dom Quixote e, com o passar dos anos, encarnou essa personagem com toda a convicção e loucura… Quando reencontra Toby, vê nele o seu “fiel escudeiro” Sancho Pança. Difícil era ter meios para filmar um guião cada vez mais apurado. Quem se afirmava como provável Dom Quixote era outro Monty Python: Michael Palin.
Tudo pareceu ter solução em maio de 2016, depois de se assistir a uma conferência de imprensa no Hotel Carlton, em Cannes. “É desta!”, disse aí Terry Gilliam. “Conheci o Paulo Branco em fevereiro e disseram-me logo que era o único produtor do mundo capaz de me produzir este filme. Estou muito feliz. Conheci-o em fevereiro e já estamos na pré-produção.”
Mas a relação com o produtor português tornou-se, rapidamente, mais um pesadelo na história de O Homem que Matou Dom Quixote. Paulo Branco, também com algo de quixotesco, quis assumir as rédeas do projeto e concretizá-lo com um orçamento consideravelmente mais baixo do que o inicialmente previsto, tomando decisões, como produtor, que não agradaram nada ao realizador. Ainda em 2016, depois de muito esticar, a corda que unia Gilliam e Branco acabou mesmo por rebentar, os conflitos agravaram-se e a nova rodagem não chegou a iniciar-se. Amy Gilliam (filha de Terry e envolvida na produção de muitos dos filmes do pai) diria de Paulo Branco que era “um tirano e um bully”. O processo não terminaria por aí, já que o produtor português recorreu aos tribunais para impedir a estreia do filme em 2018, alegando que tinha direitos sobre ele (o que as últimas instâncias não confirmaram). Se hoje perguntarmos a Terry Gilliam se Paulo Branco é o nome de uma das muitas desgraças que se abateram sobre o seu projeto ao longo dos anos, ele responderá com ironia: “Quem? Paulo Branco? Acho que já ouvi falar dessa pessoa, disseram-me umas coisas terríveis sobre ele, mas nunca o conheci… [Risos]” E acrescentará, ainda sorridente: “Na história de Dom Quixote há a personagem de Malambrino, a sua némesis [adversário]… Acho que eu também tive o meu Malambrino.”

É inevitável perguntar a este homem de barbas brancas se nesta aventura de 30 anos para concretizar um filme não se sentiu, ele próprio, uma espécie de Dom Quixote, sonhador e desfasado da realidade. “Acho é que fui muito estúpido”, ri-se. “Claro que me identifiquei com Dom Quixote; aliás, sempre que faço um filme transformo-me, em parte, nas personagens desse filme. Dom Quixote tem grandes ideias sobre o que é o mundo, está completamente errado, cai por terra e… levanta-se outra vez! É a força dessa personagem.” Inspirou-o? “Bem… prendeu-me, como numa armadilha, acho que foi mais isso… [Risos] Quanto mais pessoas me diziam para desistir do filme, o que estava sempre a acontecer, quanto mais eu ouvia ‘don’t do it, give up!’, mais convicto eu ficava de que tinha mesmo de o fazer!”.