Na Avenida da Liberdade, desenhada por Siza Vieira na marginal de Leça da Palmeira, testaram-se por estes dias os seus limites. Discutiu-se a liberdade criativa, a liberdade de expressão e o próprio valor da arte na consolidação da liberdade – tudo a propósito da vandalização de uma escultura de Pedro Cabrita Reis na madrugada de 29 de dezembro.
A obra tinha sido inaugurada há duas semanas, sendo composta por cinco grupos de vigas de ferro que, segundo o município, permitem uma “nova perspetiva sobre a linha de horizonte do mar”, sugerindo também “diversas interpretações através da forma e geometria e da sua sobreposição com o oceano”.
As críticas aos 250 mil euros pagos pelo município ao artista (307,500€ com o IVA) ficaram marcadas na escultura, mas o município já iniciou os trabalhos de limpeza e recuperação e fez queixa ao Ministério Público contra desconhecidos. “Vergonha” e “os nossos impostos – 300 mil €” foram algumas das mensagens grafitadas.
No Facebook, a presidente da Câmara de Matosinhos partilhou fotografias, denunciando “mais um ato de vandalismo” que, lamenta, “não é nenhuma novidade”. Luísa Salgueiro recorda que “em 2015 foi destruído o cruzeiro de Leça do Balio, uma obra com cinco séculos, que foi este ano reposta”, e que nesse mesmo ano a iluminação da escultura “She Changes”, mais conhecida por “Anémona”, de Janet Echelman, foi também alvo de vandalismo. Refere ainda que “o conjunto escultórico ‘Dois Gémeos’, homenagem a Passos Manuel e José da Silva Passos, de Julião Sarmento, é sucessivamente grafitado”.
“O investimento na cultura está longe de ser consensual”, concede a autarca, mas “existem diversas formas legais, democráticas e menos lesivas do nosso património comum para evidenciar essa opinião”. Para 2020 o município reservou quatro milhões de euros no seu orçamento para a cultura, e reafirma a aposta nesta área, garantindo que nenhuma necessidade básica do concelho ficou por resolver devido à compra desta ou de outra escultura.
O Município de Matosinhos tem realizado várias encomendas de arte pública nos últimos anos, tal dezenas de câmaras municipais de todo o país, com Lisboa a liderar o pelotão de investidores. O valor de uma obra de arte é subjectivo, e sempre discutível, mas é possível fazer algumas comparações entre os montantes pagos por obras similares do mesmo artista plástico, por exemplo.
Dos 546 ajustes diretos para a compra de esculturas publicados no portal governamental BASE, a VISÃO só encontrou dois valores superiores ao da peça agora encomendada pelo município de Matosinhos: um diz respeito à escultura “Medida Incerta”, de José Pedro Croft, comprada também pela Câmara de Matosinhos, há dois anos, por 310 mil euros (381,3 mil euros com Iva); e o outro diz respeito a outra obra de Pedro Cabrita Reis, encomendada pela Câmara de Oeiras na comemoração dos 250 anos do município, e que consistia numa “intervenção plástica” do artista e numa “escultura de homenagem ao escritor António Feliciano Castilho”. O valor adjudicado foi de 1,250 milhões de euros (1.537,500 euros com Iva).
Essa intervenção plástica viria a ser apresentada como um “conjunto escultórico evocativo de Sebastião José de Carvalho e Melo, primeiro Conde de Oeiras e Marquês de Pombal”.
As obras de Cabrita Reis situam-se na área do Parque dos Poetas, espaço de 22 hectares onde o município colocou esculturas de 36 artistas, no valor de mais de três milhões de euros. sobre Cabrita Reis, podemos ler no site oficial do Parque que “a complexa diversidade teórica e formal do seu trabalho procede de uma reflexão antropológica contrária ao reducionismo do discurso sociológico”.
O então presidente da Câmara, Isaltino Morais, deveria ter inaugurado a obra a 29 de setembro de 2011, às 20h00 – mas foi preso poucos minutos antes, para cumprir uma pena de dois anos de prisão pelos crimes de fraude fiscal, abuso de poder, corrupção passiva para ato ilícito e branqueamento de capitais.
Retrato de um artista com “uma vocação para cumprir”
As críticas às obras de Pedro Cabrita Reis não são novidade, tal como sucede com as obras de outros autores e de outras peças de arte contemporânea minimalista ou abstrata.
O valor deste artista plástico pode medir-se pelo número de obras integradas em grandes coleções nacionais e internacionais e pelas encomendas e convites para grandes eventos. Cabrita Reis representou Portugal na 50ª edição da Bienal de Veneza, recebendo excelentes críticas internacionais, e uma viagem retrospectiva pela sua obra pode ser vista, neste momento e até 22 de março de 2020, numa exposição na Fundação de Serralves, no Porto. “A Roving Graze” (Um Olhar Inquieto), foi o título escolhido para a “instalação” de uma vida.
A inquietação e a vontade de experimentar formas diferentes de olhar o mundo marcam o seu percurso. Foi jardineiro, voluntário na Força Aérea, militante na UDP, mas desde muito pequeno soube o que queria ser: artista. Não havia tradição na família, não teve nenhuma influência especial. Em entrevista à VISÃO, em 2007, recordou que começou a pintar quando era miúdo, por vocação. “Toda a vida fui artista. Nunca quis ser engenheiro nem arquiteto. Nunca. Sempre quis ser pintor.”
Contudo, não sente ter nascido do zero. “Venho de uma longa linha de pessoas que me precederam e que trouxeram até mim coisas que eu estou a aprender. [a maioria] não são nomes contemporâneos, nunca tive (e cada vez tenho menos) apetência para me debruçar sobre os meus pares na arte contemporânea. De forma jocosa, costumo dizer que a minha arte já me dá problemas que cheguem.”
Em 1973 entrou para a Faculdade de Belas-Artes de Lisboa mas com o 25 de Abril os estudos ficaram um pouco de lado (levou 10 anos a concluir a licenciatura). Tornou-se militante da UDP e, durante três anos, viveu focado na política. Quando meio mundo pintava murais pela cidade, ele só pintou um, na Rua da Rosa, no Bairro Alto. “Era um retrato do Otelo Saraiva de Carvalho, a verde e a preto. E curiosamente essa foi uma das últimas pinturas murais a desaparecer em Lisboa.”
Cabrita Reis não fica indiferente às polémicas em torno do seu trabalho mas, como disse em entrevista à VISÃO, tem “uma vocação para cumprir” e não pode ficar refém da opinião dos outros: “Acredito absolutamente naquilo que faço, tenho claramente a noção que tenho de o fazer cada vez melhor. Só assim posso desafiar o julgamento do tempo, o julgamento das pessoas e os meus próprios medos.”
Mas também há criticas favoráveis às suas peças. “Central Tejo”, uma encomenda da Fundação EDP colocada no pontão do rio em 2018, junto ao Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), em Lisboa, foi rapidamente adoptada. Formada por duas torres em alumínio, conexas e iluminadas, com 10 metros de altura, desconhece-se o valor cobrado pela obra, que foi negociado em conjunto com a compra da coleção particular de arte de Cabrita Reis, que passou a integrar a coleção do MAAT. A Fundação EDP pagou a Cabrita Reis, em 2016, um milhão e meio de euros por 388 peças de 74 artistas nacionais.
O bom exemplo de Vila Nova da Barquinha
A Fundação EDP tem realizado grandes investimentos em arte contemporânea e, na área da arte pública, criou uma parceria especial com o município de Vila Nova da Barquinha, há precisamente dez anos. O concelho apresentou uma candidatura a fundos comunitários para reabilitar a zona ribeirinha, criando à beira rio um parque de esculturas, mas, apesar da elevada comparticipação aprovada, os valores a investir pela autarquia eram demasiado elevados para saírem apenas do seu orçamento anual.
Com um investimento tripartido foi possível avançar com o projeto, e o atual presidente da autarquia, Fernando Freire, considera que esse foi um ponto de viragem fundamental na revitalização do concelho. “Vivíamos de costas voltadas para o rio, a zona ribeirinha era basicamente uma lixeira”, recorda. Hoje é um espaço recuperado, com vida, e que passou a ocupar um lugar central na identidade da vila ribatejana.
Ao Parque de Escultura Contemporânea de Almourol, com obras de 11 artistas nacionais – entre eles, Pedro Cabrita Reis, com “O Castelo” –, juntou-se a criação de um Centro de Estudos de Arte Contemporânea, onde, ao longo do ano, vários nomes das artes plásticas e da fotografia realizam residências artísticas, e 60 alunos do Departamento de Arte do Instituto Politécnico de Tomar têm aulas.
As esculturas de Alberto Carneiro, Ângela Ferreira, Carlos Nogueira, Cristina Ataíde, Fernanda Fragateiro, Joana Vasconcelos, José Pedro Croft, Pedro Cabrita Reis, Rui Chafes, Xana e Zulmiro de Carvalho, compradas por valores entre os 40 e os 75 mil euros, estão dispersas nos sete hectares do Barquinha Parque, que recebeu o Prémio Nacional de Arquitetura Paisagista 2007 na categoria “Espaços Exteriores de Uso Público”, da autoria da dupla de arquitetos paisagistas Hipólito Bettencourt e Joana Sena Rego.
“Cerca de 100 mil pessoas visitavam o castelo de Almourol todos os anos mas não entravam na vila”, lembra Fernando Freire. Agora têm razões para ficar, e isso nota-se a vários níveis. “Em dez anos conseguimos alavancar um processo de expansão turística, e passámos de 40 para 150 camas no concelho”, revela.
Na zona ribeirinha foram reabilitadas mais de 40 casas e nas quatro freguesias do concelho avançou o projeto Artejo, com o apoio do programa Arte Pública Fundação EDP (orientado para territórios de baixa densidade, como objectivo de inclusão social), com 11 grandes paredes a serem entregues à imaginação de Vhils, Violant, Vicente e Manuel João Vieira, formando um circuito artístico.
“Foi curioso que, ao longo dos anos, foram as próprias freguesias que começaram a pedir para também terem obras nos seus territórios, para descentralizarmos a cultura”, nota Fernando Freire. Das críticas iniciais aos gastos da câmara em arte já não ouve ecos: “Penso que todos reconhecem o contributo fundamental destes projetos para as benfeitorias realizadas e para o aumento da qualidade de vida”, diz.
Esta semana, o INE revelou ser este o único concelho do Interior que ganhou população na última década. “Não é por acaso”, congratula-se o autarca, que gostaria de fazer novos investimentos em arte pública, desta vez no centro da vila.