Edmundo Galeano copia excertos da Ode Marítima e da Ilíada para treinar a sua mão direita, onde só o polegar e o indicador sobraram depois de um acidente num poeirento campo de refugiados em que prestava assistência humanitária. De regresso a Lisboa, à frente dos olhos vê flutuar uma pequena e perfeita bola azul: a forma que toma o livro que sonha escrever para “avisar a Humanidade”. Lídia Jorge, 71 anos, identifica-se com a mistura de ambição e ingenuidade dessa personagem que criou, um dos cinco irmãos que regressam à casa do Largo do Corpo Santo num momento difícil da família Galeano, que tem encalhado um avultado negócio com barcos de grande porte.
Depois da utopia revolucionária do 25 de Abril revisitada no anterior romance, Os Memoráveis (2014), a escritora, que prodigiosamente se estreou na literatura em 1980 com O Dia dos Prodígios, apresenta em Estuário um livro com vista para o apocalipse − tão longe, tão perto. Para ler mesmo “depois da última página”.
Uma primeira curiosidade: a escolha dos nomes das personagens nos seus romances é um processo quase aleatório? O livro começa logo com o nome “Edmundo Galeano” que, inevitavelmente, faz pensar em Eduardo Galeano, o escritor uruguaio… É uma coincidência?
Não é um processo aleatório, tem muito que ver com a sonoridade dos nomes, com o peso que quero dar-lhes. Escolhi a palavra Galeano sem pensar no Eduardo Galeano, apesar de ser um escritor que aprecio e criou um género muito próprio. Mas não pensei em nada disso. O nome Galeano, realmente, tem que ver com Gales, mas há também uma associação sonora à palavra “galeão”, que remete para viagens, o imaginário marítimo, uma ligação com o exterior. A escolha não foi aleatória, mas o efeito pode ser… Os nomes das outras personagens também resultam muito pela sonoridade. Charlote, por exemplo, não é um nome muito português. Mas coincide com a invasão de nomes estrangeiros que se deu há uns 30, 40 anos. Como queria que ela fosse diferente, com um percurso especial e um peso às costas, achei o nome apropriado.
Mas é uma escolha prévia a todo o processo de escrita?
Estive a ver ontem os apontamentos para este livro e a verdade é que tinha uns nomes escolhidos que depois fui alterando à medida que as personagens iam aparecendo e crescendo. Sílvio, por exemplo, parecia-me apropriado ao irmão mais frívolo…
Um eco do Silvio Berlusconi?
Talvez. Pode estar no inconsciente… Muitas coisas são inconscientes, não só na escrita, em tudo na vida. Vivemos com um mundo submerso, sem darmos conta dele… Os escritores perdem o pudor de mostrar esse mundo e vão, muitas vezes, buscar aí o alimento para as suas páginas.
Um dos temas centrais deste romance é a própria literatura, através da ambição do protagonista, Edmundo. Também a Lídia sonha, ou sonhou, ao longo da sua carreira literária, “escrever um livro para avisar a Humanidade que tome cuidado com o seu destino”?
Acho que, na totalidade, é isso que eu faço. Mesmo que não seja um desígnio explícito, é para isso que a literatura serve; é uma espécie de testemunho subversivo, alucinado, que não tem só como objetivo não deixar esquecer o passado mas avisar que há leis intemporais que comandam a História e os sucessos dos homens. Neste romance fala-se muito da Ilíada, um livro precisamente sobre isso: diz-nos que a violência será eterna e é perigosa, destrói os homens. Mesmo Cervantes, com o Dom Quixote, avisa-nos sobre o fim do mundo, uma loucura que é salvadora mas, ao mesmo tempo, tem o extermínio à frente… Neste momento em que estamos aqui a falar, deve haver centenas e centenas de escritores sentados à frente dos computadores a escreverem sobre isso, sobre a ideia do apocalipse. Esse medo é um tema que atravessa a nossa literatura. Não só herdámos isso do mundo bíblico, como é mesmo algo inerente à Humanidade: pensar que além de um fim dos homens, haverá um fim da Terra… Hoje estamos numa dobra do tempo, percebe-se perfeitamente. E, por isso, acho que imensos escritores escrevem sobre isso, quase todos. Seja pela denúncia dos abusos sobre a Terra, os abusos da política. Até a melancolia que atravessa a literatura em relação ao amor… Também é um aviso sobre um desentendimento latente. A literatura serve para isso, para nos avisarmos uns aos outros. Não de forma sádica, mas embalados pela beleza das palavras. Um livro bom nunca pode ser só sobre o mal, é sempre também sobre a beleza, e é essa parte que é sempre redentora na literatura. Pode-se escrever sobre o fim do mundo, mas há sempre uma janela que é redentora, que é a da beleza. Respondendo mais concisamente: sim, se eu somar todos os meus livros, acho que eles também são isso, esse aviso sobre um fim do mundo que pode acontecer e nós queremos adiar indefinidamente.
Sente, então, empatia com o Edmundo, que parece ter uma ambição quase impossível de concretizar: alguém que nunca escreveu uma linha e sonha construir um livro que muda tudo e pode influenciar o mundo…
Ele é a minha parte ingénua. O Edmundo tem a ambição total, sabe exatamente o que quer mas ainda não tem experiência suficiente, é um inexperiente da vida… Ele só estará apto a escrever depois da última página. Sinto-me muito na pele dele, sim.
A Lídia também vê aquela bola azul suspensa à sua frente enquanto escreve um livro?
Há um estado de encantamento quando escrevemos e pensamos que a nossa história vai ser o livro absoluto. Ninguém conseguiria escrever se não imaginasse que está a escrever a página absoluta, o livro absoluto… Mas, quando se chega à última página, há sempre uma desilusão e descobrimos que não foi isso que fizemos.
Na génese deste livro está, então, a ideia de apocalipse, de fim do mundo, e dessa “dobra do tempo” de que falava?
Há esse impulso inicial, sim. Há um mundo que pode decompor-se de um momento para o outro, mas ele é ensaiado perto de nós. Não são só as planícies da China cheias de poluição ou os rios e oceanos em risco… O princípio do mal, da decomposição, está perto de nós. Esse foi o movimento inicial. Comecei a escrever este livro há quatro anos e depois interrompi-o durante três. Quando voltei a ele, percebi que a personagem que me era mais próxima era, sem dúvida, o Edmundo. E o facto de ele ter perdido três dedos da mão direita é importante. Porque, para mim, a arte, sobretudo a escrita, que é a que conheço melhor, vive de sentimentos muito profundos. O vistoso não existe na literatura, nem o aparato, a lantejoula, o brilho, a luz exterior… Tem de ser tudo denso e interno. E os escritores só conseguem esse nível quando têm o sentimento da perda. Só através da perda se fica habilitado a entender a perda dos outros.
Em que ponto está a sua fé na literatura? Falando aqui, também, dos escritores mais jovens. Há um capítulo em que, num bar, várias personagens ridicularizam a ideia de livros longos…
Tenho muito mais fé nos escritores do que nos leitores, devo dizer. Encontro escritores jovens que estão continuando, com muito denodo, a literatura. Não há perigo nenhum, por aí, de ela se extinguir. Há perigo do lado dos leitores. Há uma desorientação enorme, promovida também pelos responsáveis pela difusão, que, hoje, parecem não entender que preparar os leitores é um trabalho lento… Um leitor demora uns 20 anos a fazer. É um trabalho duro mas seguro. E o que acontece neste momento é que há uma visão fútil em torno da atração pela literatura. O que está acontecendo é que parece que tem de haver vários engodos para se chegar à literatura. Como se ela estivesse fechada no centro de uma floresta e só se chegasse lá se, antes, se recebesse um copo de vinho, queijos, futebol, sexo… Se se oferecer espetáculo. E a certa altura, pensa-se, as pessoas chegarão lá. Acho que é um erro, não deve ser assim.
Está a falar das políticas públicas para a promoção do livro e da leitura?
Sim. É trágico ver como hoje se promove a literatura. É um saquinho fechado, de que toda a gente diz “é maravilhoso!”, mas que nunca chega a ser aberto. Acho que há uma futebolização da cultura. Em todos os domínios… Até na própria representação dos escritores, que antes se fazia com cuidado, colocavam-se os escritores no mesmo plano para que houvesse respeito por todos. Hoje é exatamente o contrário, estabelece-se uma hierarquia violenta e muitas vezes aleatória, que corresponde ao que se faz no futebol. Pergunta-me se tenho fé na literatura… Eu continuo a ter. Figuras de proa como George Steiner ou o Alberto Manguel têm dito que a literatura não nos faz, necessariamente, melhores pessoas. Concordo… Mas faz de nós pessoas mais ricas, mais amplas. E eu acredito que a literatura melhora a vida. E que tem poder, um poder lento e invisível… Há dias, voltei a um livro de meados do século XIX, A Dama das Camélias [de Alexandre Dumas filho] e pus-me a pensar se ele melhorou a Humanidade… Concluí que sim, melhorou, de facto! Na altura, diriam: mas como é que falar duma prostituta de classe alta pode melhorar alguma coisa? Eu acho que melhorou, denunciou um cinismo, desmantelaram-se processos… A literatura tem redenção dentro, promete uma redenção.
Sente, mesmo, que há menos leitores?
Nas narrativas mais longas, densas, mesmo as pessoas que dizem que leram o livro inteiro muitas vezes só leram as primeiras páginas e as últimas… Sinto isso, sim. Antigamente, ia encontrar-me com os meus amigos e oferecia os meus livros. Hoje, raramente ofereço os meus livros… Tenho a sensação de que as pessoas lamentam ter mais um livro em casa, de que não têm tempo para ele. Hoje não há tempo para os longos segmentos… E eu acho que eles são indispensáveis porque alimentam aquela parte da nossa vida onde se criam os valores, onde se tem disponibilidade para a reflexão. Quando formos autómatos que reagem só a curtos segmentos, penso que a Humanidade será pior. As pessoas que pensam assim − e acho que são muitas, ainda −, não devem ter vergonha de o dizer. Essa vergonha existe, como se pensar assim não fosse coisa do nosso tempo. Se calhar, um dia seremos uma pequena seita.
Como no filme do François Truffaut e livro do Ray Bradbury Fahrenheit 451…
Exatamente.
Por outro lado, nunca houve tantos festivais literários em Portugal…
Sim, e isso significa, sobretudo, que há um segmento que luta pela literatura. A proposta desses festivais é sempre positiva, mas também percebo o lado de superficialidade e degradação que contêm. Num festival, serão tocadas três ou quatro pessoas, talvez, não sei… Já me aconteceu, num desses festivais, uma senhora tratar-me, do princípio ao fim, por Lígia Borges. Eu não disse nada. Mas nem no meu nome acertava… Eu respeito. Tudo é ínvio, não faz mal. É importante, por exemplo, que se encontre um poema de Sophia de Mello Breyner num escaparate; podem passar 20 crianças que nem reparam, mas depois há uma que lê e reconhece que está ali a usar-se uma linguagem que não é a sua de todos os dias, e de que pode gostar.
Ao mesmo tempo, parece que nunca se publicou tanto… Há uma voragem rápida de novidades nas livrarias.
Sim, e torna-se difícil escolher alguma coisa… É o nosso tempo. É como os iogurtes: é difícil comprar um simples iogurte, há variedades para tudo, às tantas não sabemos qual escolher… Quando era muito pequena, vivia da escassez dos livros. Qualquer um que me chegava às mãos era uma alegria. As crianças, hoje, têm milhares de livros disponíveis. Quando encontram um bom, será também uma alegria. O caminho é diferente. É muito importante que as pessoas que gostam de livros o digam umas às outras… Quem percebe o que é a literatura, e como ela é indispensável tem o dever de espalhar a boa nova, a boa notícia, e dizer “olha, encontrei um livro que vale a pena”. E vou encontrando muitas pessoas que o fazem.
Sente que os jovens escritores mantêm esse fogo vivo na literatura portuguesa…
Sim… Não vou dizer nomes porque eles são muitos e ficam zangados se cito três ou quatro e não outros, como se os excluísse. Existem jovens que falam sobre o País e sobre o mundo de uma forma não fútil. Os melhores, sem dizer nomes, são aqueles que seguem uma tradição da literatura portuguesa que é ser uma literatura que tem um cerimonial, que não tem pressa, tem algo de barroco e de repetição. Uma literatura com um formato litúrgico e que tem algo de religioso no processo, na construção. Há muitos, felizmente, que seguem o caminho dos escritores dos anos 80 e 90 que foram magníficos em Portugal…
Também há o contrário, os que ensaiam um corte completo…
Exatamente. Há escritores mais jovens que… quando os leio parece que estou a ler traduções. Não têm raiz. São livros que podem ser escritos por um búlgaro, um irlandês, um tailandês, ou um português… Como se fossem todos traduzidos pelo Google. Fica a ideia de que fizeram muitas leituras dos best-sellers americanos.
Costuma dizer que a sua literatura é também uma “crónica do tempo que passa”. Em Estuário, tocam-se muitos temas bem contemporâneos. Lembro-me, por exemplo, do levantamento contra o assédio, o movimento #metoo. Em vários momentos do livro, Charlote veste-se de forma provocante, com saias curtas e grandes decotes, e pensa para si própria: “irei protegida, irei armada”…
Sim… Há uma figura de estilo que consiste em conseguir-se o que se quer usando o elemento oposto. Acho que isso tem que ver com algo que as jovens fazem muito hoje: a exposição de uma feminilidade que não é erótica, é para dizer: “eu sou diferente, eu ponho a minha pele à vista mas a mim ninguém me toca”. Pode ser uma exposição estética, mas não é erótica. É uma prova de força e uma provocação, sim. Ela está desafiando. Quanto à questão do #metoo… Durante muito tempo, o assédio era um assunto tabu. De repente, começou-se a falar e pode haver, agora, algum exagero. Mas não se pode ultrapassar essa situação sem esse exagerar, esta fase conduzirá provavelmente a uma nova visão muito mais equilibrada. É um movimento positivo. Mas também perigoso: há homens, agora, que assumem medo das mulheres e do relacionamento, pode perder-se o encanto da sedução mútua entre homens e mulheres… Mas o exagero, como digo, levará a um ponto de equilíbrio, e os homens que não continuem a pensar que trocam um emprego, ou um contrato, por dois ou três apalpões. As mulheres estão a reivindicar a sua dignidade.
Outro assunto bem contemporâneo. A questão dos campos de refugiados e da ajuda humanitária. Põe na boca de um médico finlandês uma perspetiva cínica, pessimista. Diz ele: “Para quê todo aquele sacrifício? Se o caminho seria sempre o martírio da vida de uns pela sobrevivência de outros.” Está difícil ser otimista…
Sim, hoje chocamo-nos muito com estes refugiados que batem à porta da fortaleza europeia e quase nos esquecemos de que começam a eternizar-se campos de refugiados em África há décadas, com pessoas que nasceram lá, vivem lá… Situações de prolongamento infinito, e uma incapacidade da ONU de superar o egoísmo das nações. Um homem bom, como António Guterres, não vai conseguir ultrapassar essas situações, parece que estão ali reunidos todos os males do mundo. Esse médico torna-se consciente do cinismo que existe na distribuição do dinheiro e nas estratégias dos governos que não têm como prioridade resolver essas situações.
Em Portugal tem havido a sensação de que invertemos o ciclo de uma crise profunda, há até algum otimismo…
Há uma maior autoconfiança, sim. Mas o livro ainda se centra num contexto difícil, apesar de não ter querido fazer uma crónica direta dessa crise. Na verdade, hoje vive-se um momento de confiança acompanhada pela desconfiança e pelo medo de que esta situação positiva possa não ter bases assim tão sólidas. O cuidado de tentarmos que esta autoconfiança não resulte na repetição de erros anteriores é prudente. Nesse sentido, acho que Portugal está vivendo um momento de equilíbrio. Um equilíbrio como há muito não se vivia.
Sente que este é o seu livro mais desencantado?
Não… Os livros nunca serão desencantados se depois da última página obrigarem a rever a matéria, percebendo por que motivo houve esse desencanto. Não há livros pessimistas na literatura, há é livros bem ou mal escritos. E os livros literários servem para isso: para serem lidos depois da última página. Esse é o movimento fundamental do grande leitor, aquele que lê depois da última página. Não há desencanto, o que há é aviso.