Egon Schiele foi acusado de atentado ao pudor e sedução de uma jovem − em 1911. Cento e dezassete anos depois é alvo de outra acusação em praça pública. “Desculpem, tem cem anos de idade mas ainda hoje é demasiado ousado”, dizem as faixas brancas que cobrem os genitais das figuras pintadas pelo expressionista, agora reproduzidas no metro londrino e nas fachadas de Colónia e Hamburgo, para assinalar o centenário do Modernismo de Viena. Reconhecido pela figuração de corpos eróticos e torturados, as obras deste artista austríaco como Homem Nu Sentado (Autorretrato) (1910) ou A Rapariga de Meias Cor de Laranja (1914), segundo os responsáveis do Vienna Tourist Board, ainda ofendem… A ocultação pudica, dizem, serve para “encorajar o público a escrutinar a mudança − ou a não mudança − na abertura e atitudes da sociedade”. Não é um caso único da recente onda politicamente correta que está a varrer o panorama cultural.
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A menina retratada por Balthus faz uma “romantização da sexualização de uma criança”, acusam
D.R.
A obra Thérése Dreaming (1938), retrato da vizinha adolescente do pintor francês Balthus (1908-2001), olhos fechados e saia levantada, foi objeto de uma petição online para ser retirada do Museu Metropolitan (Met). Razões? No atual clima carregado de acusações de assédio sexual, a pintura é, defendem, “sexualmente sugestiva” e faz uma “romantização da sexualização de uma criança”. O Met, acusado de “apoiar o voyeurismo” recusou a petição, defendendo a arte como “o melhor meio para refletir tanto sobre o passado como o presente”.
Gatilho rápido
Retirada das paredes da Manchester Art Gallery, foi a obra Hylas e as Ninfas (1896), pintada por John William Waterhouse (1849-1917). A reinterpretação do mito clássico com adolescentes de seios desnudados é, hoje, ofensiva? A curadora Claire Gannaway defendeu que os movimentos Time’s Up e #MeToo tinham levado à decisão de retirar o quadro para… “estimular o debate”. Mas devem os museus censurar uma obra com base em pressupostos sociopolíticos? “Duvido que, tirando uma obra da vista pública se promova um debate, mesmo dizendo que tirá-la da vista pública é radicalizar o gesto para que esse debate seja possível. E duvido que essa seja uma estratégia que os museus devam seguir”, diz Delfim Sardo. O curador, ensaísta, e programador da Culturgest, fala em “claudicação”: “As instituições museológicas desenvolveram um terror da sanção pública e vivem essa insegurança de forma aguda, porque não sabem as condições de possibilidade do seu funcionamento, dos seus públicos, estão muito dependentes de colecionadores privados, passam por demissões de diretores… É natural que vivam essa angústia de ter que ter resposta rápida, normalmente tão imponderada como o motivo que a causa.”
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As ninfas de Waterhouse foram alvo de tentativa de censura
D.R.
“Os museus têm que ganhar uma autoconfiança e ter um papel de resistência e de debate sério, que não fique apenas pendurado no discurso inflamado das redes sociais”, defende ainda Sardo. “A falência da ideia de pensamento crítico é terrível porque arrasta consigo esta noção plebiscitária de que, como não sabemos quais as condições em que podemos produzir um juízo, o melhor é não produzir juízo nenhum, ou então, pura e simplesmente, retirar objetos dos museus, da circulação pública, e menorizar o espetador, pensando que ele não consegue ter uma opinião crítica. Isso é deplorável.”
Fora dos museus, um outro caso emblemático está a dividir a opinião pública e a colocar essa mesma questão: como lidamos com um grande escritor que professou ideais antissemitas? Deixa-se o público lidar com a faceta de incitamento ao ódio do autor de Viagem ao fim da Noite? A editora Gallimard concluiu que não: em 2017 suspendeu a publicação dos panfletos antissemitas de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Escritos em 1930, indisponíveis ao público desde a Segunda Guerra Mundial, os virulentos textos antijudeus conheceram uma edição canadiana, Écrits Polémiques (Éditions Huit, 2012), mas a sua republicação na França atual acordou fantasmas. “A nível simbólico, houve receio. E, como em todas as coisas da arte, elas funcionam sempre em termos de ecos simbólicos”, recorda Delfim Sardo. “O critério moral não pode entrar na avaliação artística, porque, se entrar, mata tudo”, declara António Mega Ferreira. O escritor, tradutor e jornalista defende a separação de águas entre apreciação moral e individual, e uma avaliação artística. “Eu também não gosto de Céline. Mas nem me passa pela cabeça proibir a circulação dos seus livros. É preciso que “mil flores desabrochem” [aludindo ao poema de Manuel Alegre, Flores para Coimbra]: quantas mais obras forem publicadas, editadas, disponibilizadas ao maior número de pessoas, melhor.” Publicar tudo? “Se se publica uma obra completa, tem de se publicar tudo, incluindo as coisas horríveis.” Mega Ferreira desmistifica os efeitos: “Só se identifica com os panfletos antissemitas do Céline quem já for antissemita. Quem não o for, garanto que reage negativamente quer ao conteúdo quer à forma desses textos − eu li-os.”
A obra (não) é o criador
Todos os dias, parece haver novas obras ou artistas apanhados neste revisionismo do século XXI. Um caso recente foi o da National Gallery of Art, em Washington: cancelou uma grande mostra dedicada ao pintor e fotógrafo hiper-realista Chuck Close (n.1940) no seguimento de alegadas acusações de assédio sexual. “A arte não é o artista, são duas coisas diferentes”, enfatiza Delfim Sardo. E acrescenta: “É preciso distinguir entre públicas virtudes e vícios privados. E é um processo de infantilização do espectador partir do princípio que ele não consegue fazer essa destrinça.” O curador sublinha que tal não exclui a necessidade de um debate profundo sobre todas os moralismos que convergiram neste grande caldeirão − mas lembra, igualmente, que a “arte em si nunca fez ninguém bom”. Um nome, entre vários possíveis, paira sobre esta conversa: o da cineasta e fotógrafa alemã Leni Riefensthal, famosa pelos filmes de propaganda, num preto e branco exuberante e formalmente espetaculares, feitos para o regime nazi.
Trumpismo
António Mega Ferreira não tem dúvidas: a raiz destas “exaltações puritanas” vem, hoje, dos Estados Unidos. “O que se pretende, agora, é criar uma sociedade de interditos. É uma emanação de um clima atiçado pelo medo e inseguranças que propiciam estas manifestações reacionárias − não há outro nome. É muito favorecido por, neste momento, estar no poder a extrema direita mais horrorosa, abjeta, absurda e obscurantista que alguma vez ocupou a Casa Branca, e que é Trump e tudo o que o levou ao poder. Isto favorece este género de fundamentalismos, de intolerâncias, como essa espécie de censura retrospetiva da arte e da cultura”. Mas o autor escuta aí ecos passados: “O que é a caça às bruxas do senador McCarthy nos EUA? É a transcrição para a instância política dessa mentalidade totalizante, exclusivista, fundamentalista, radical.”
Em Portugal, a sociedade civil é mais branda, dizem-nos. O que não quer dizer que não tenha havido episódios reminiscentes dos acontecimentos presentes, recordam-nos, provocados por “pessoas conservadoras”. Nuno Krus Abecassis, então presidente da Câmara de Lisboa, quis proibir, em 1985, a exibição do filme Je Vous Salue Marie. Em 1992, o secretário de Estado Sousa Lara vetou a obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo “de José Saramago” na lista de concorrentes ao Prémio Literário Europeu, defendendo que este tinha ferido as convicções religiosas do povo. Ou, ainda, o caso de Dulce Malta, mulher do pintor Eduardo Malta e curadora do então Museu de Arte Contemporânea, que escreveu um livro tecendo considerações insultuosas sobre Vieira da Silva (entre outros artistas) por ser judia, referindo o seu “nariz em forma de seis” − um livro publicado e mandado retirar das livrarias… pelo próprio Salazar.
Segundo os livros de história, habituámo-nos a associar os gestos censórios ao aparelho de Estado ou a instituições religiosas. Mas a presente realidade radica na imensa maioria que se expressa através das redes sociais − que também não são neutras. Veja-se o Facebook que procede a uma censura de conteúdos, lembre-se o caso caricato da estátua de Neptuno nu, postada por uma utilizadora e censurada pelo gigante tecnológico. “Vivemos nesta voragem de opiniões, algo em que o Faceook é genial: hoje é-se bestial, amanhã é-se uma besta. É-se queimado em praça pública, mas não há praça pública, são uns blogues… E, depois, estes passam a ter poder. Ou seja, o Facebook e outras redes sociais passaram a dar uma voz, que é uma não voz: as pessoas dizem o que quiserem mas estão protegidas por um ecrã”, considera Vasco Araújo, artista plástico que tem trabalhado a memória portuguesa, o racismo e a memória histórica e que, em 2016, se sentiu alvo de censura quando foi impedido de filmar no Portugal dos Pequenitos. A sua visão sobre esta onda do politicamente correto inclui tanto aspetos negativos como positivos. Ou seja, “a possibilidade de problematizar as questões, a linguagem, é fantástica”, defende. “Pense-se na comunidade negra, por exemplo, e numa obra como Os Pretos de Serpa Pinto, no Museu do Chiado [pintado por Miguel Ângelo Lúpi, 1879]: é a representação de dois escravos trazidos da sua expedição a África. O que é correto? Retirar a peça? Não, ela pertence à História. Mas tem que se contextualizar a obra porque ela é ofensiva para uma determinada comunidade.”
As polémicas estão acesas. Por quanto tempo e com que efeitos, é uma boa questão. Leonor Areal, realizadora e investigadora da censura no campo dos media, aponta a “disparidade de conceitos e critérios existentes na sociedade: “Um quadro tão inocente como as Ninfas não mostra nada mais que a nudez. Vemos programas diários de televisão com imensa violência − bélica, de género, sobre a mulher como objeto sexual − e as pessoas ofendem-se com quadros feitos há cem anos! Não faz sentido. A televisão é o mais poderoso meio de educação que existe, um museu não tem o mesmo poder”, opina.
“Esta cólera sagrada que agora se levanta não vai sobreviver no tempo, vai diluir-se e extinguir-se. Trata-se de um fenómeno cíclico ao longo da história ocidental: antigamente, tinha origem no mundo católico, hoje é sobretudo no mundo protestante. Não é diferente de sinais histéricos que houve antes, que também não se sabe como surgiram”, sublinha Mega Ferreira. Exemplos: “De repente, uma série de pessoas acharam que o nu é mau: veja-se a célebre história da Contra Reforma, em que se pintava uma toga por cima do sexo do Cristo. Neste momento, é uma histeria que tem origem no trumpismo e que foi acelerada com o movimento #MeToo – que começou como uma causa justíssima e agora está a descambar”, defende. Leonor Areal alerta para benefícios inesperados no tapamento de quadros: “É divertido ver estes casos porque a censura tem tendência a atirar nos próprios pés, quando é revelada publicamente passa a ter o efeito contrário. De certeza que a exposição do Schiele já tem enormes filas de gente a querer ver os quadros, aquilo que não pode ver no metro.”
“No meio destas limpezas, para o bem e para o mal, perdem-se determinadas coisas”, diz Vasco Araújo. “Não me parece boa política esvaziar os melhores museus que foram feitos. Mas esse é, talvez, o curso da obra de arte: é apagada, depois volta, é revisitada…”. O artista termina com ironia: “Se fossemos rever tudo, tudo estava errado para trás. Vamos deitar fora as estátuas e os vasos gregos porque têm mulheres nuas e homens com os pénis eretos? Teriam que arranjar imensos armazéns onde os guardar…”