Aviso: qualquer semelhança entre a série 1986 e a vida de Nuno Markl não é pura coincidência. Passada nos tempos áureos em que foi adolescente, a série de comédia que se estreia a 13 de março (na RTP1) não podia deixar de ter o “caixa de óculos” sem sucesso com as miúdas na escola, a gótica, o metaleiro, a betinha de boas famílias que trabalha no videoclube, a rádio pirata e o pai cinéfilo e comunista que engoliu um sapo ao ter de votar em Mário Soares, contra Freitas do Amaral, nas eleições presidenciais de há três décadas. Sem chats nem redes sociais, a comunicação entre os adolescentes fazia-se nas carteiras da escola e na secção Pregões & Declarações do jornal Blitz. Tinham passado pouco mais de dez anos desde a Revolução de Abril e com a entrada na Comunidade Económica Europeia (CEE) íamos deixar de ser um país pobre.
Foi com muita dificuldade que Nuno Markl, 46 anos, conteve todas as suas memórias daquele ano, para não as depositar nas 650 páginas do argumento, escrito a meias com o amigo Filipe Homem Fonseca, (“mais experiente a escrever para televisão”, diz, e que poderia trazer “um lado mais maduro”), a irmã Ana Markl (“ótima contadora de histórias”) e Joana Stichini Vilela, “alguém com um conhecimento tremendo, quase jornalístico e detalhado, da época.” 1986 vai mostrar como aquelas eleições presidenciais, as mais pop alguma vez disputadas em Portugal, afetaram as relações entre pais e filhos, professores e alunos e até criaram amores proibidos. Gritavam-se slogans orelhudos, “Soares é fixe!” e “Prá Frente Portugal!”, era o marketing a funcionar no seu melhor com os chapéus de palha e o sobretudo loden verde de Freitas do Amaral ou a canção Rock da Liberdade, escrita por António-Pedro Vasconcelos e cantada por Rui Veloso para a campanha de Soares. “Estas eleições bipolarizaram o País. Achei que isso daria pano para mangas não só para comédia mas também para algum drama”, conta Nuno Markl à VISÃO, no jardim da Praça General Vicente de Freitas, em Benfica, bairro da sua vida e onde a série é, assumidamente, filmada.
Boa Onda FM – Tó (Tiago Garrinhas) e Marta (Laura Dutra) animam as emissões da rádio Boa Onda FM, inspirada na rádio pirata A Voz de Benfica, em Benfica, onde Markl deu os primeiros passos
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Além da nostalgia
Visitámos a rodagem da série. Em pleno agosto quente de 2017 fingia-se ser janeiro frio de 1986. Há gravações com cinco carros já clássicos e uma moto Yamaha DT 50, os figurantes usam camisolas de gola alta, outros pullovers pelos ombros, o cabelo com penteados à futebolista, nos adereços há malas de cabedal, meias brancas e relógios Casio. Passaram 16 anos desde que Markl escreveu a sinopse da série. O homem da rádio que os portugueses conhecem das rubricas com histórias bizarras e das coleções de cromos dos anos 80 tinha “genuinamente vontade de escrever ficção televisiva” e propôs o trabalho à RTP. “Gosto muito de contar histórias, tanto pode ser na rádio, no Homem Que Mordeu o Cão, como num sketch ou em algo mais vasto como esta série, mas a minha abordagem é sempre a mesma. Nunca senti que estava a fechar um estilo e a abrir outro.”
Para Fernando Alvim, parceiro de inúmeros programas de rádio e de televisão – os dois são aliás os pais do Gato Fedorento –, “o humor dele é certeiro e estudioso. É argumentativo e hábil. É fundamentado e distintivo. O Markl tem o dom de fazer parecer que o que faz é fácil. Mas não é. Ele dedicou toda a sua vida a fazê-lo”, analisa Alvim, para quem o amigo é um dos mestres do humor.
A escrita de 1986 “foi um trabalho muito orgânico”, lembra Ana Markl. “Vai além da nostalgia. O Nuno, com a sua visão mais apaixonada, queria pôr todos os elementos que fizeram parte da sua vida; a Joana estava preocupada em dar a perspetiva social, mais séria e rigorosa, e eu concentrei-me em estruturar a história para que não fosse um desfile de memórias.”
Terminado o argumento, os autores passaram ao detalhe, com listas dos objetos existentes nos quartos das personagens ou, por exemplo, a playlist de heavy metal para a personagem do Sérgio feita por Filipe Homem Fonseca. A Joana Stichini Vilela conseguiu arranjar a programação da televisão e o estado do tempo de todos os dias da ação da série, passada em janeiro e fevereiro de 1986. Coube à autora da coleção de livros LX60, LX70 e LX80 (sobre a Lisboa dessas décadas) estar atenta a questões da linguagem − “Começava a dizer-se ‘bué’ nos liceus.” E o que naquela altura era espantoso, hoje tem efeito de comédia: o anúncio no jornal a um computador Macintosh com um mega de memória, por exemplo, pôs todos a rir.
“Questões como a vida noturna em Lisboa não podiam ficar de fora ou notícias que mexeram com a vida das pessoas, como a explosão da nave espacial Challenger, que dá mesmo origem a uma parte da narrativa”, descreve Joana.
Clássico – Os atores Henrique Gil e Laura Dutra com o criador da série, Nuno Markl, no Mini de campanha de Freitas do Amaral
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Um tipo com ideias loucas
Hoje, com 233 mil seguidores no Instagram, depois de ter saído do Facebook “para manter a sanidade mental”, Nuno Markl lembra-se de como era lenta a pesquisa na internet da década de 90. Há 20 anos, na Rádio Comercial nascia a rubrica O Homem Que Mordeu o Cão e os insólitos não brotavam nas redes sociais como agora. “Tive a sorte de o início d’O Homem… coincidir com o boom da internet em Portugal. Descobri a secção Oddly enough da Reuters com coisas bizarras e um site que ainda é uma referência de culto na internet, o fark.com, um repositório de notícias estranhas. Procurava histórias que fugissem à normalidade, protagonizadas por seres humanos normais, que pudessem dizer algo sobre a espécie humana”, conta Nuno.
“Por muito pessoal que pareça e funcione como a minha imagem de marca, O Homem Que Mordeu o Cão foi uma encomenda pura e simples. Em 1997, estava meio emprateleirado na Comercial e já a trabalhar nas Produções Fictícias quando o Luís Montez assumiu a direção da rádio e quis fazer uma rubrica com o que não aparece nos noticiários. Acabou por ser o Pedro Ribeiro a dizer-lhe: ‘Há aí um tipo com ideias loucas e podes contar com ele’.” Nuno Markl tinha feito o curso de Jornalismo no Cenjor, não porque quisesse ser jornalista mas porque “queria estar nesta área para contar histórias em rádio”, inspirado por programas como Pão com Manteiga, de Carlos Cruz, Rebéubéu Pardais ao Ninho, de Herman José, ou Rock em Stock, de Luís Filipe Barros.
“O Homem Que Mordeu o Cão costuma ser descrito como uma rubrica de histórias bizarras, mas na verdade é uma rubrica de histórias bizarras escolhidas e contadas pelo Nuno Markl – o que é bastante diferente. As histórias bizarras são um pretexto: o que interessa são os comentários do Nuno”, considera Ricardo Araújo Pereira. Para o humorista, Nuno Markl foi, provavelmente, a primeira pessoa da sua geração a fazer uma coisa em nome próprio com uma visibilidade nacional. “E, ainda mais relevante, a evidenciar o primado do texto: se o texto fosse bom, o facto de o intérprete ter recursos limitados, ou seja, não ser um ator, perdia importância”, acrescenta.
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Video Magic – O realizador, Henrique Oliveira (à direita), num dos cenários da série, o obrigatório videoclube, onde trabalha a betinha de boas famílias
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Mr. Bean da escrita
Aos 24 anos, Markl já tinha chamado a atenção de Nuno Artur Silva, que o convidou para ser “o quinto elemento” das Produções Fictícias, mesmo no início, com Rui Cardoso Martins, José de Pina e Miguel Viterbo. Depois de sair da secção de informação da Correio da Manhã Rádio, Nuno passou a fazer programas de autor. No fundo, foi um regresso às origens, à experiência que teve na adolescência na rádio pirata A Voz de Benfica, instalada nas traseiras da casa da avó, até ao dia em que esse espaço ardeu e Markl perdeu muitos discos e cassetes… Ao ouvir a radionovela A Saga de Abílio Mortaça, sobre um vendedor de enciclopédias, Nuno Artur Silva, ex-administrador da RTP, achou que “havia ali um registo e um tom que não eram habituais na comédia portuguesa”. Incapaz de fazer mal a uma mosca, o estilo de humor de observação de Nuno Markl, sem abordar futebol ou política, “faz com que não seja agressivo ou focado em ofender as pessoas, e isso contribui para o consenso à sua volta”, diz Nuno Artur Silva.
“Ele está imerso na cultura pop anglo-saxónica e americana desde sempre. É um grande conhecedor de tudo o que a cultura pop dos anos 1980 para a frente nos tem dado. Continua a usar as t-shirts com bonecos com que o conheci. É o exemplo máximo do não envelhecimento.”
Em 1997, era o tempo das vacas gordas em programas de humor na televisão.
“No Herman Enciclopédia, por exemplo, construíam-se masmorras gigantes em esferovite para um único sketch de 30 segundos”, recorda Nuno Markl. “Tenho a ideia de que era uma altura bastante pacata no País, mas de vez em quando aconteciam pequenas explosões atómicas e eu estive numa delas: A Última Ceia, do Herman José.” O público também não esquece o Não Pirilamparás, escrito a quatro mãos por Markl e João Quadros, que levou Herman José às lágrimas na personagem de Lauro Dérmio. Para o criador d’O Tal Canal, o olhar irreverente de Nuno Markl sobre as banalidades do dia a dia “é uma vocação responsável por 50 por cento das ideias, os outros 50 são trabalho”. “Ser grato é uma das suas características e sempre que pode evoca-me e aos nossos trabalhos conjuntos, ao contrário de outros autores que tiveram gigantescos ataques de amnésia”, diz Herman José.
A normalidade de Nuno Markl conquista as pessoas e, para muitos, distingue-o dos seus pares. “A sua figura é a do anti-herói. É uma espécie de Mr. Bean da escrita e diverte-se com as suas fragilidades”, compara Herman.
“Receio que ele reúna uma série de características que compõe um retrato psíquico que a medicina moderna descreve como ‘chalupa’. Trata-se de um cocktail muito sofisticado de curiosidade infantil, vontade de dar atenção ao que não interessa e profunda irresponsabilidade. Esta disposição torna-o inapto para desempenhar qualquer profissão séria. Mas faz dele um humorista extraordinário”, reforça Ricardo Araújo Pereira.
Detalhes – As maiores dificuldades da produção não foram os carros, nem os móveis das casas, nem a roupa, mas sim o mobiliário urbano, pois, em 1986, a cidade de Lisboa tinha as ruas muito mais despojadas
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‘‘Boom’’ da stand-up comedy
No lançamento do primeiro livro escrito a partir da rubrica O Homem Que Mordeu o Cão, no Teatro Villaret, em Lisboa, Nuno Artur Silva lembra-se de pensar que essa apresentação “parecia mesmo um espetáculo”. Ao palco iam subindo os amigos das Produções Fictícias, guionistas desconhecidos, habitualmente na sombra dos atores para quem escreviam. Daí à digressão pelo País foi um ápice. “Nas Produções Fictícias pensámos: ‘Vamos fazer stand-up.’ O Ricardo Araújo Pereira e o José Diogo Quintela avançaram, criámos o grupo Manobras de Diversão em que se estreou o Bruno Nogueira, e O Homem Que Mordeu o Cão ao vivo passou a ser o palco natural para esses números acontecerem”, recorda Nuno Artur Silva. “O stand-up é imortal, vemos isso na América onde é uma instituição; é um estilo de humor que não morrerá, porque haverá sempre pessoas com vontade de ouvir pessoas com graça a contar histórias. É simples e é barato de fazer”, resume Nuno Markl.
O ponto alto da carreira de Nuno Markl coincide também com o seu início. O Homem Que Mordeu o Cão “é o que abre todas as portas, foi o que acabou por fazer de mim uma figura pública, porque antes já fazia rádio, mas sem qualquer presunção de ser conhecido”. Para Markl, O Homem… era business as usual, era fazer rádio. “Mas pressentia que podia ser diferente.” Nuno acha que a rádio é para contar histórias, mais do que ser um gira-discos. “Há 20 anos teria de haver um maior equilíbrio entre palavra e música, mas hoje em dia não faz muito sentido havendo tanta oferta de música com o Spotify e afins…
” Embora considere o humor um produto arriscado, Nuno continua a apostar nele. “Não consigo fazer outro desporto radical… Faço só este, o humor, que sei que pode destruir-me mas que ao mesmo tempo é bastante cómodo, porque estou sentado a escrever. É arriscado de várias maneiras, sem ser preciso sequer estar a lidar com material polémico.” Será a crise o contexto ideal para existirem mais, e melhores, notícias bizarras? “Tenho ideia de que estamos sempre em crise… Basta pensar no Sabadabadu, em 1981, com Ivone Silva e Camilo de Oliveira a cantarem ‘isto é que vai uma crise!’ E notícias bizarras existirão sempre, mesmo que o mundo se transforme num paraíso.”
Metaleiro – A playlist de heavy metal para a personagem de Sérgio (Miguel Partidário) foi escolhida a dedo por um dos autores do guião, Filipe Homem Fonseca, que se reviu na sua adolescência
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‘1986’ A banda sonora
O maxi-single Pensamos no Futuro Amanhã, “uma balada celestial rica em sintetizadores” irá funcionar no disco da banda sonora de 1986 como uma espécie de Time After Time, de Cyndi Lauper, na época. Na voz de Ana Bacalhau, esta canção de João Só, responsável aliás por todo o disco, fala de esperanças e expectativas. É a música das cenas com Marta (interpretada por Laura Dutra), uma adolescente que sonha ser astronauta. Para Markl, toda a série é, também, uma viagem no tempo. “Pareceu-me interessante e divertido que fossem criadas canções novas que soassem a clássicos da época”, diz, sobre o disco (disponível em vinil, claro), com edição marcada para 16 de março. Além do disco, a série verá a sua banda sonora transformar-se num concerto solidário de angariação de fundos, organizado pela Associação Novo Futuro. A 17 de maio, pelas 21h30, com bilhetes a partir €10, sobem ao palco da Altice Arena grandes nomes da canção nacional: Ana Bacalhau, Catarina Salinas, David Fonseca, João Só, Márcia, Miguel Araújo, Samuel Úria, Tatanka e a participação especial de Lena d’Água. No Instagram, Markl já avisou: “Os artistas irão cantar não só as canções da série mas também canções favoritas da época da série. Com este elenco, isto é quase um Live Aid!”