A ideia é o espetador perder-se num labirinto em PVC, isto é, andar por entre as oito obras inéditas, dependuradas do teto da galeria Vera Cortês, em Lisboa. São criações em várias camadas, reminiscências das sinalizações urbanas onde é possível reconhecer os rostos escavados que proprocionaram o reconhecimento a Alexandre Farto Aka Vhils. Intrínseco é a exposição que o traz de volta à capital portuguesa, depois do sucesso atingido com Dissecção/Dissection, mostra-fenómeno que levou mais de 65 mil pessoas ao antigo Museu da Eletricidade em 2014. Era a rua a invadir o museu.
A cumprir dez anos de carreira, o artista assume que a experiência global deixou marcas. Esta nova exposição é, diz Vhils, uma “reflexão sobre a urbe”, um questionamento sobre a condição humana e a “falta de alternativas que temos a este modelo global e à uniformização cultural que este se encontra a impor num mundo cada vez mais interconectado”.
Intrínseco é apresentada como “uma reflexão na forma de instalação”. Que reflexão é esta, e a que conclusões chegou?
A exposição é um apanhado em jeito de reflexão sobre os últimos cinco anos em que tenho estado a fazer projetos em várias cidades do mundo. Explora temas que têm sido abordados em outras exposições, mas que, aqui, são consumados de uma forma mais sintetizada nas peças que formam esta grande instalação. Tem por base uma colecta de imagens destes vários sítios e é essencialmente uma reflexão sobre a urbe, onde a maioria da população mundial hoje vive. Sobre aquilo que nos aproxima e nos unifica neste modelo global, mas também sobre a maneira como este nos é imposto e nos condiciona a sermos como somos e a reagirmos como reagimos no dia-a-dia. No final, levanta questões sobre a condição humana hoje, mas também sobre a falta de alternativas que temos a este modelo global e à uniformização cultural que este impõe num mundo cada vez mais interconectado. Esta instalação mostra uma cidade que quase ofusca a identidade humana, seja através da saturação de imagens presentes no espaço público, da sinalização urbana, de todos estes elementos aos quais estamos expostos e sujeitos no contexto urbano, mas também através da falta de oportunidades que temos para intervir nela, na organização do seu espaço, no pensamento e planificação que lhe dá forma, que normalmente são orientados para a eficiência do funcionamento da mesma, da sociedade que lhe dá forma e do modelo de desenvolvimento vigente.
A referência aos elementos visuais de vários locais do mundo onde já trabalhou, sugere uma lógica de mini antologia. Este é um balanço de caminho?
A exposição assinala, sem dúvida, um momento chave no meu percurso, dado que faz agora dez anos que comecei a formar a ideia de criar o meu estúdio e a reunir as condições que me têm permitido viajar e trabalhar nestes projetos todos, noutras cidades e noutros contextos. Esta exposição representa, para mim, um culminar deste percurso, uma tentativa de cristalizar estes momentos que fui confrontado ao longo destes anos numa reflexão conjunta que reúne vários pensamentos e várias imagens destas cidades onde tenho trabalhado. Não a vejo propriamente como uma mini antologia, mas mais como um agrupar destas reflexões que tenho desenvolvido e um levantar de questões que tentam, por sua vez, encontrar novos caminhos e novos desafios.
Essa geografia plural evocada traz algum comentário à globalização, à democratização, à sobrevivência das experiências culturais de cada lugar?…
Sem dúvida. Todo o meu trabalho tem vindo a explorar este processo global, que nos tem trazido inúmeros benefícios, em termos de agregação e conectividade, mas que acaba por representar um diálogo que não controlamos, no qual as pessoas têm pouca voz ativa. Intrínseco levanta esta questão de seguirmos um modelo face ao qual não existe alternativa. Mas também aponta para a questão das grandes pressões que existem para um desenvolvimento uniforme, de base essencialmente económica, que não contempla o lado cultural, social e histórico de cada lugar. Creio que estas questões são alguns dos grandes desafios que a humanidade hoje enfrenta e que dizem respeito à salvaguarda da identidade local num mundo global e do que isso implica para a vida das pessoas e comunidades nesta realidade.
Os materiais da instalação são placas de PVC, flexível e transparente. O que o interessou neste media mais pop, por assim dizer?
A escolha dos materiais foi feita em função daquilo que as suas características permitem expressar sobre a plastificação social e cultural que hoje vemos em curso. Além do material em si, a sua disposição em camadas fala-nos também do processo de sobreposição, de saturação de estímulos a que estamos sujeitos e da ofuscação da identidade que daí resulta. Vem também no sentido de explorar aquilo que a cultura pop é hoje em dia: a saturação de cores, o aumento exagerado do brilho e contrastes que vemos hoje em dia na imagética que forma a nossa cultura visual, a plastificação de tudo o que é identidade, património, cultura e história. E esta escolha reflete também os grandes desafios de sustentabilidade que enfrentamos a nível global.
Descreve-se esta instalação como uma “experiência mutante” em que o público altera os pontos de vista. Funciona como um labirinto, um espelho, um dispositivo com certa teatralidade, um site specific, uma recriação da malha urbana, ou antes pelo contrário?…
A exposição está pensada para ser entendida no local. A ideia é que as pessoas se movam no espaço e, ao fazerem-no, irão atravessar as próprias peças, criando novas leituras em função do seu posicionamento no local, uma vez que elas funcionam como camadas independentes que podem ser alinhadas e reunidas. Tudo depende do ponto de vista da pessoa e onde ela irá percorrer o espaço. Esta possibilidade fala-nos também da interpretação subjetiva da realidade, do modo como, face aos mesmos fatores, podemos acabar por ler a realidade de formas diferentes. Como em tudo, a subjetividade da verdade e da realidade depende muito do nosso ponto de vista social, cultural ou histórico.
Depois da última exposição ter tido níveis de atenção tão elevados, e da carreira estar em modo planetário, o Vhils de 2018 perdeu alguma coisa pelo caminho?
Não, de todo. Pelo contrário, tenho adquirido imenso pelo caminho que me tem ajudado a amadurecer e a fazer o meu trabalho progredir. As pessoas mudam e evoluem, naturalmente, mas a minha missão enquanto artista é uma – e continua focada na ideia de tornar visíveis questões invisíveis que considero importantes. Tenho estado também muito empenhado em contribuir para a comunidade artística de onde venho e à qual devo muito. Isto no sentido de ajudar a criar novas oportunidades para artistas, quer visuais quer de outras áreas como a música. Daí o meu envolvimento em projetos como a plataforma Underdogs e o Festival Iminente, entre outros. Sinto que, tendo alcançado este nível de visibilidade, estou numa posição que me permite ajudar a criar projetos que consigam dar visibilidade, oportunidades e sustentabilidade a outros. E é isso, a par do meu próprio trabalho artístico, que me tem interessado fazer.