Quantos pedaços de uma história cabem em 100 quilómetros? De Murça, onde vive, até ao agrupamento de escolas de Valpaços, onde leciona Artes Visuais, João Pinto Coelho (Londres, 1967) faz do vaivém quotidiano o caminho mais curto para as cenas, personagens e imaginários dos seus livros. Perguntem a Sarah Gross, romance de estreia (2015), muito ficou a dever a esse percurso transmontano quase diário. “Parte dos meus livros é escrita no carro”, revela o autor, após calcorrear os vinhedos do seu refúgio aldeão nas cercanias de Sobredo. “Estou a conduzir, surge uma ideia e gravo. Tenho o telemóvel cheio de frases, diálogos, coisas desgarradas que depois vejo se funcionam no papel. Em Lisboa, gastava essas horas a estacionar ou noutras coisas estúpidas…”
Em 2000, o arquiteto e professor deu consigo exaurido, espremido entre rotinas desenfreadas, almoços em pé e prazos sufocantes. Concorreu então a uma escola no interior do País. “Pouco importava para onde ia, queria apenas sair de Lisboa.” Foi parar a Valpaços. Ao trocar a capital pela província, João Pinto Coelho não mudou apenas de geografia. Ganhou tempo de qualidade e em doses generosas, mesmo que a tal centena de quilómetros nem sempre lhe devolva a centelha de um parágrafo.
Do leitor obsessivo e amadurecido brotou finalmente o escritor. Logo ao primeiro livro, a crítica e o público (Sarah Gross vai na quarta edição) renderam-se a uma história arrebatadora, de chispa cinematográfica, fruto de talento e décadas de estudo sobre o Holocausto. Era para ser uma BD, mas ele foi buscar palavras onde nunca procurara: às entranhas de Oświęcim, a cidade polaca que já foi um lugar feliz, reescrita a cinzas pelos nazis na memória da Humanidade. Sim, Auschwitz.
A 20 de outubro último, o tempo voltou a fugir-lhe, mas por boas razões. Nesse dia, o júri do Prémio Leya, presidido por Manuel Alegre, distinguiu Os Loucos da Rua Mazur (Dom Quixote), desassossegando o remanso de João Pinto Coelho, agora num corrupio de viagens entre Murça e Lisboa relacionadas com a promoção do livro (que chega às livrarias no próximo dia 21). “Viver da escrita” passa-lhe, cada vez mais, pela cabeça e este pode ser o empurrão que faltava. Elogiado pela qualidade literária, efabulação e verosimilhança, o novo romance, burilado a partir das feridas abertas pela violência numa pequena comunidade da Polónia em plena Segunda Guerra Mundial, arrecadou o maior galardão literário do País. O enredo convoca os fantasmas da relação entre cristãos e judeus, a insanidade do ser humano comum e até a ausência de Deus. “Enquanto escrevia lembrei-me do padre Tolentino de Mendonça para apresentar o livro [dia 29, em Lisboa]”, explica. “Fi-lo também enquanto crente e católico, por causa das minhas dúvidas e inquietações sobre um Deus que não intervém para travar a barbárie. Mergulhar no tema através da voz ou da pele de uma personagem é a parte mais interessante da escrita, mas, ao fazê-lo, encontramos sempre questões que são nossas”.
O Mal, lugar íntimo
Jedwabne, Nordeste da Polónia, 10 de julho de 1941. Semanas depois da chegada dos nazis, um grupo de cidadãos, na maioria cristãos, arrastou à bruta os vizinhos judeus para um celeiro, sobretudo mulheres e crianças, queimando-os vivos. O número de vítimas, entre 600 a 1600 consoante as fontes, é questão ainda controversa na atualidade polaca: a Igreja Católica nega a narrativa oficial sobre os acontecimentos e recusa culpas do seu rebanho no desvario incendiário enquanto a maioria da população de Jedwabne nem quer ouvir falar do assunto. Na sequência do genocídio, das pilhagens e da destruição de referências históricas, a secular presença judaica foi varrida da memória física da cidade e trancada a olhares curiosos até hoje.
Este e outros episódios semelhantes ocorridos em mais de uma vintena de cidades polacas no mesmo período constituem o contexto histórico do romance, no qual João Pinto Coelho recusa, uma vez mais, a tentação de adjetivar o sofrimento, um exercício obsceno quando falamos desses tempos. “São as únicas coisas a que pretendo manter-me absolutamente fiel, são o meu chão para a criação literária. Não queria contar nada que fosse fantasia. A cena da violação e outras aconteceram. O resto, sim, já é do domínio da ficção e da criatividade”, reforça. As páginas de Os Loucos da Rua Mazur começaram a escrever-se nas entrelinhas de Sarah Gross. “Quando acabei, ainda tinha coisas por dizer. E uma delas era sobre o Mal, a personagem principal dos meus romances, sobretudo deste.”
Estamos, agora, imersos nas atrocidades cometidas pelo “zé-ninguém”, pelos seres humanos assustadoramente normais, na senda de Hannah Arendt. Porém, não se trata aqui de romancear a partir da “banalidade do Mal” teorizada pela filósofa alemã de origem judaica, mas sim a pretexto “da universalidade do Mal”, no dizer de João Pinto Coelho: “Quando terminei o Sarah Gross, os maus eram os alemães. Neste caso, falo da perseguição aos judeus praticada pelos seus vizinhos cristãos numa cidade que nunca identifico, mas onde cabe Jedwabne. Se falarmos apenas das vítimas estaremos a referir-nos às pessoas que não tiveram opção. Por isso, convém também falar dos perpetradores, sobretudo enquanto pessoas iguais a nós, para aprendermos a não ter tantas certezas sobre o nosso caráter em situações extremas”, desafia.
Tragédia a caminho?
Mais do que respostas, o Holocausto devolve-lhe, cada vez mais, perguntas. “Dependendo das circunstâncias, todos temos um bocadinho de Himmler ou de Eichmann dentro de nós. O que estará adormecido para que a rolha salte, de forma descontrolada?”, interroga-se o autor, aqui e agora, mas também nas entrelinhas das mais de 300 páginas do romance. Por isso, ele não se cansa de semear o primado da dúvida entre mentes jovens quando vai às escolas falar do tema. “Aprendemos pouco com a História”, assinala. “Continuamos arrogantes, certos da nossa bondade e incapacidade de fazer coisas terríveis. Mas, naquela época, aqueles cristãos também terão pensado assim…”
Nem de propósito, em Varsóvia e noutras cidades polacas, ressurgem vagas inquietantes de discursos xenófobos, extremistas, em nome da “Polónia pura” e “branca”, impulsionadas por movimentos de extrema-direita e com o aplauso patriótico do Governo. “Os sinais estão aí, de novo, mas a indiferença é mais forte do que a História”, adverte João Pinto Coelho. “Os objetos, os monumentos, o que resta da memória judaica está a ser atacado e vandalizado. Receio que isto acabe outra vez em tragédia. Se fosse judeu, neste momento não me sentia confortável na Polónia. A crise dos refugiados remete para o período pré-Holocausto, quando quase todos os países fecharam as portas aos judeus. Nós, quando estamos assustados, reagimos da pior maneira”, refere o escritor.
É neste pano de fundo, resgatado à História, que se desenrola o novo romance. Mais uma vez, João Pinto Coelho tira o tapete ao leitor que, a páginas tantas, já vai convencido de que pegou a narrativa pelos cornos. Tal como fizera em Sarah Gross, o escritor surpreende-o e leva-o com mestria a épocas e geografias distintas, tricotadas num baloiço constante entre os primórdios e o início da Segunda Guerra Mundial (no Nordeste da Polónia e da Rússia) sem esquecer a atualidade (em Paris). É na capital francesa que vive, aliás, uma das personagens candidata a tornar-se inesquecível: Yankel, o livreiro judeu e cego que recorre às amantes para lhe lerem na cama, desde logo um exercício de imaginação poderoso e arriscado por tratar-se de alguém que não vê nem viu antes. “Senti necessidade de falar do sofrimento extremo através da perspetiva de um cego. Quase como se não quisesse dizer o que via. Como é que se conta isso sem recorrer às imagens?”, questionou-se, a dada altura, o autor, obrigando-se a fechar os olhos e a tatear todas as referências sobre os vários tipos de cegueira. “Quando comecei, pensei que um cego só via negro”, assume. Yankel, de resto, podia ter sido qualquer coisa na obra, tão avassaladora é a sua presença, mas tornou-se livreiro por razões mais singelas: “É a homenagem a um homem extraordinário, o Joaquim Gonçalves, de Sines. Admiro-o imenso, é um herói pela forma como luta pela sua livraria [A das Artes] e pelos seus livros”. A Yankel juntam-se outras personagens que compõem o trio central, amoroso e conflituoso, da ação de Os Loucos da Rua Mazur, à deriva entre a culpa e o perdão: Shionka, a habitante da floresta que não fala, e Eryk, o cristão polaco em busca da sua própria redenção através das palavras e memórias do velho amigo judeu. “Cada frase demorou muito tempo a escrever. É um livro mais arriscado e onde me exponho mais”, assume João Pinto Coelho.
Percurso e inspiração
O despertar do escritor para a temática do Holocausto remonta à série com o mesmo nome exibida em Portugal nos primeiros anos de democracia, tal como à produção britânica Colditz, cuja trama é centrada num castelo transformado pelos nazis em prisão de alta segurança. Seguiram-se décadas de leituras e investigações, até integrar, em anos recentes, duas ações do Conselho da Europa que lhe permitiram “viver” nos campos de Auschwitz e Birkenau. Aí entrevistou sobreviventes, estudou contextos e vivências das comunidades judaica e cristã anteriores à guerra, assistiu a debates inflamados e descobriu Oświęcim, onde 17 alunos de Valpaços e outros tantos polacos desenvolveram um diário comum, a partir de rigorosas referências históricas da cidade. “O Perguntem a Sarah Gross nasceu aí.”
A partir da ideia seminal, João Pinto Coelho sabe sempre como os seus romances vão acabar, “até com algum pormenor”. A aventura maior é o começo e o caminho. “Tenho de me divertir a escrever. Envolvo-me muito, desapareço para o mundo, fico tão curioso como o leitor.” O professor da página inicial pode já ser uma professora na seguinte. E pode até dar-se o caso de uma gravidez ou um morto ficarem esquecidos no novelo, mas os alçapões involuntários e as reviravoltas fazem parte desse deleite. As descobertas e cenários reavivam no escritor deslumbramentos quase infantis. “Parte da ação do primeiro livro passa-se nos Estados Unidos da América porque me apeteceu viajar até lá, onde não vou há muitos anos. Por vezes, tinha pressa de sair da escola e chegar a casa só para viajar até ao Kimberly College ou até ao meu apartamento em Cracóvia”, explica, sorrindo, o homem que já trabalhou num teatro perto de Nova Iorque. “Levava as lâmpadas, pregava os cenários, coisas menores. Era um ambiente tipo Fame, com atores da Broadway. Foi fantástico, marcante”. Todas as experiências contam.
O “comprimido” García Márquez
Se as florestas polacas atravessam o novo romance é porque primeiro se atravessaram no percurso de João. “São cenários muito interiorizados. As árvores de Birkenau, por exemplo, marcaram-me imenso. Apesar do que lá aconteceu, é um sítio lindíssimo.” É fácil descobrir-lhe influências anglo-saxónicas na escrita, mais difícil é destapar os nomes. E quando isso acontece, descobre-se, afinal, que a inspiração se faz à sombra de paisagens mais improváveis.
“O García Márquez é um escritor fundamental para mim, mas ninguém o vai encontrar na minha escrita. É a quem mais recorro quando escrevo, costumo dizer que é o meu comprimido”, desvenda, divertido com a sua própria revelação. “Houve dias em que a última coisa que me apetecia era escrever. Sentava-me no sofá, abria o Cem Anos de Solidão ao calhas e dez minutos depois estava revigorado e a escrever como se não houvesse amanhã. Deve ser o livro a que voltei mais vezes, mas nunca o li de uma ponta à outra, foi sempre por excertos.”
Casado, três filhos, João Pinto Coelho escreve preferencialmente no braço de um sofá ou na mesa da cozinha, das três às sete da manhã. Se for no inverno, com a lenha a crepitar e uma chávena de café por perto, melhor. Quer isto dizer que, enquanto dormíamos, ele escreveu, durante onze meses, à razão de uma página por dia, um romance para sobressaltar a nossa indiferença e lembrar, parafraseando Mark Twain, que a História não se repete, “mas rima”. Os Loucos da Rua Mazur talvez sejam os outros, mas também podemos ser nós, para lá do espelho. Sobretudo se, uma vez mais, não acordarmos a tempo.
(Entrevista publicada na VISÃO 1289, de 16 de novembro de 2017)