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Luis Barra
Não há muito tempo, no aeroporto de Lisboa, rumo a Luanda, José Eduardo Agualusa ouviu alguém chamar por si.
“Polémico!”, gritava um homem. “Polémico, tiras uma selfie comigo?” Não ligou muito à alcunha e despachou o assunto, não sem antes esboçar um sorriso. Sorriso esse que aumentou quando viu o homem regressar ao seu lugar e a responder a um amigo que lhe perguntou: “Quem é aquele?” “Não sei, só sei que é polémico.” Tem então fama de polémico, José Eduardo Agualusa, em Angola, não tanto pelos romances que escreve, como nos dirá, mas pelas entrevistas.
Aline Frazão, sua conterrânea e amiga, talvez ainda não tenha direito a tamanho cognome, mas já conquistou a sua voz no país. Sobretudo pela música, mas também pelas denúncias e pelas ideias que expressa nas crónicas que assina no portal informativo Rede Angola, onde Agualusa também escreve.
Duas vozes inconformadas que a VISÃO juntou para uma conversa sobre literatura, música e liberdade.
Quando se pensa na Aline e no José Eduardo, um triângulo partilhado surge imediatamente: Angola, Portugal e Brasil. Trabalharem juntos, como aconteceu no primeiro disco da Aline, foi uma inevitabilidade?
Aline Frazão (AF): Sem dúvida. Sou fã da literatura angolana, em particular a contemporânea. Devo-lhe a construção da minha linguagem. A ligação ao Agualusa é ainda mais forte por causa dessas afinidades que partilhamos. Foi uma sorte poder ter musicado uma letra sua, e também do Ondjaki, logo no primeiro disco.
José Eduardo Agualusa (JEA): Essa triangulação sempre existiu em Angola, apesar de alguns momentos de rutura. Tentei mostrar um pouco isso no meu último romance, A Rainha Ginga. Angola foi sendo construída a par e passo com o Brasil, numa relação direta que nem sempre passou por Portugal. Mesmo a literatura é mais devedora do Brasil, na sua origem, do que de Portugal.
Outro elemento comum será o entendimento da arte enquanto construtora da identidade angolana.
JEA: Sim, claro. Basta pensar que os grupos independentistas urbanos de Angola, incluindo o MPLA, surgem primeiro como movimentos culturais que só mais tarde evoluem para partidos políticos. Tudo começa, na verdade, pela poesia.
AF: Curiosamente, a ligação entre a poesia e a música também é muito forte desde o início. O Rui Mingas, por exemplo, musicou muitíssimos poemas num reportório que deu corpo ao nosso cancioneiro e imaginário.
Para mim, um dos livros que mais me marcou foi uma antologia poética angolana.
Quando vim estudar para Portugal fiz questão de trazer a edição do meu pai.
Tinha-a sempre na mesa de cabeceira para a revisitar com frequência.
Era uma espécie de outro passaporte?
AF: Foi um dos livros que me permitiu descobrir a identidade angolana. Quando vemos o nosso país de fora, essa vontade de conhecimento aumenta muito. Também me permitia estar próxima e ligada a Angola, como se juntasse peças de um infinito puzzle, o da minha própria identidade. Sabendo que não era daqui, de Portugal, de onde era mesmo? Fui à procura.
A identidade angolana tem sido a grande matéria-prima dos romances de Agualusa. No caso da Aline, também é uma fonte da sua música?
AF: De uma forma diferente, porque recorro à música e não à literatura. As canções são sempre mais curtas, mas não faltam nelas referências históricas ou mais relacionadas com o presente. A atualidade política e cultural de Angola é tão frenética que acaba sendo provocadora.
JEA: Angola é um ótimo país para escritores e músicos.
Em que sentido?
JEA: Porque não lhe falta matéria, nem urgência. É a velha máxima de Tolstoi das famílias felizes não terem história. Portugal é hoje um país muito estável no contexto da lusofonia, a par de Cabo Verde, mesmo se os portugueses não têm essa noção.
Talvez aqui possa haver carência de matéria ficcional… Em Angola as coisas precisam de ser ditas. É uma questão de urgência mesmo, que se nota tanto na música como na literatura ou nas artes plásticas.
Essa urgência requer também muita coragem, já que se trata de um país novo, em construção, com resultados nem sempre desejados.
JEA: Criar exige sempre coragem, porque nos expomos. Não se pode escrever se não tivermos nada para dizer. Nesse sentido, quer num país democrático quer num não democrático, a coragem é a mesma: a de aparecer, de enfrentar, de afirmar.
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Luis Barra
Sente que essa coragem é maior nas novas gerações?
JEA: São gerações muito mais interventivas.
Acho até que a geração da Aline é melhor do que a minha, em todos os aspetos.
Isto, claro, falando de um certo fragmento da sociedade angolana. Está mais preparada, tem outro conhecimento, liga-se mais ao mundo. E nestes últimos anos tem demonstrado uma enorme generosidade.
Quando se pensa nos jovens que foram presos, o que ocorre é exatamente coragem e generosidade. À minha geração e às anteriores, talvez tenha faltado a capacidade de juntar essas duas palavras.
Que impacto teve na Aline a recente prisão e luta dos ativista angolanos?
AF: Enorme. Estava na ilha de Jura e preparava-me para gravar o último tema do álbum Insular, que é inspirado numa guerrilheira do MPLA, Deolinda Rodrigues, mais conhecida por Langidila. Foi das poucas mulheres a ter um cargo de relevo naquele movimento político. Desde que a descobri vivo fascinada e obcecada pela sua figura. A certa altura da letra digo: “Os poetas de outrora escreveram no chão a palavra Liberdade.” Foi uma coincidência enorme com o grito dos ativistas: “Liberdade já.” Quer na gravação quer nos concertos, tornou-se uma música de grande intensidade.
Foi uma espécie de eco do passado a ligar lutas diferentes mas pelo mesmo ideal?
AF: A história de Angola tem isso. Com todos os erros, defeitos e feridas, há personalidades, espíritos e ideias que acabam por fazer todo o sentido nos dias de hoje.
Mas sente a sua geração mais ativa e preparada para os desafios do presente?
AF: Há obviamente uma diferença de contexto que é importante salientar. Não é indiferente viver num processo de pré e pós-independência ou até de guerra civil.
Hoje, temos outros traumas, outros medos. O tempo vai passando e é impossível parar mudanças que são naturais às novas gerações e a um mundo globalizado. Nem todos os jovens têm acesso à internet, mas uma fatia considerável tem. E isso foi suficiente para gerar um onda de solidariedade. Mesmo quem estava longe, como era o meu caso, pôde associar-se. Quando os ativistas foram presos houve uma mobilização muito grande, uma enorme comunhão.
JEA: Foi muito bonito ver a geração da Aline juntar-se de forma unânime no movimento de solidariedade para com os ativistas presos. Músicos, artistas plásticos, escritores, estão lá todos. Os da minha geração e das mais velhas não. Ficaram em silêncio. Nesse sentido, revelou-se um divisor de águas.
Mais do que uma passagem, foi a tomada de testemunho pelas gerações mais jovens?
JEA: As gerações mais velhas que se manifestaram em privado não tiveram coragem de se expor publicamente. Talvez tenham mais prisões… Não será fácil viver em Angola e ao mesmo tempo manter a independência e afrontar o sistema. Os jovens não têm tantas amarras.
A prisão dos ativistas e o seu processo em tribunal foi um ponto sem retorno?
JEA: Acredito que sim. Desencadeou um movimento amplo de descontentamento que minou os alicerces do sistema. A discussão deste tema entrou dentro das famílias, incluindo as que estão mais próximas do poder. Está neste momento, com toda a certeza, a contribuir para a mudança. Não sabemos o que vai acontecer, mas foi fundamental. Mas quando eu falo das gerações passadas tenho consciência que muitos jovens de então foram imensamente generosos. A diferença está no grau de sofisticação e de ética desta juventude, que passa sobretudo pela não violência. O Luaty Beirão e os outros ativistas não criaram um movimento de guerrilha. Foram pelo caminho oposto. Trinta e seis dias de greve de fome. E resultou.
A Aline também se sente comprometida com essa ética?
AF: Todos deviam sentir-se comprometidos com assuntos que vão além dos seus próprios interesses, independentemente dos papéis que desempenham na sociedade. Também reconheço o grau de sofisticação e a evolução ideológica para a não violência da minha geração, mas há um tema importante que costumo sublinhar sempre que me refiro a este assunto. E é, talvez, politicamente incorreto quando abordado em conjunto com a luta pela liberdade dos ativistas: o papel das mulheres. É que nesse grupo havia duas mulheres, a Rosa Conde e a Laurinda Gouveia. Perguntaram a um dos ativistas qual tinha sido o papel delas, ao que ele respondeu: “Foram assistentes.” Ou seja, continua a haver esta ideia de que as mulheres incluídas nestes movimentos, de igual coragem, presentes nas mesmas manifestações e também presas, podem ser relegadas para segundo plano. E isto pelos próprios ativistas, que são hoje o bastião do progresso de Angola. Mantém-se, como no tempo da Deolinda Rodrigues, a imagem da mulher como secretária ou assistente, não como parte integrante do processo.
JEA: Este é sempre o assunto mais polémico em Angola. Aliás, nunca tive problemas com os meus romances, em parte porque a maior parte daquele poder não lê. A polémica só surge com as entrevistas.
E mesmo assim só tive reações agressivas quando defendi que Angola devia ter forte presença feminina no governo, não uma só mulher, mas a maioria. Aí, sim, poderíamos ter outra forma de entender a política.
Ainda há muito por que lutar?
AF: Especialmente neste campo. Já debati muito este assunto em Angola, incluindo com os ativistas. A emancipação das mulheres não pode ser uma luta secundária, que vem depois. Se se parte do mesmo princípio, o da igualdade, tem de vir junto.
Se queremos acabar com as desvantagens sociais e distribuir melhor a riqueza não podemos pensar só num género. De outra forma caímos numa contradição interna.
A um escritor é sempre sedutor perguntar se a ficção não terá já antecipado o que vemos hoje na presidência de Angola, O General no Seu Labirinto, como diz o título do romance de Gabriel García Márquez…
JEA: Talvez até seja mais apropriado O Outono do Patriarca, provavelmente o melhor livro do García Márquez. Nesse romance percebe-se como todos os ditadores se assemelham. Esse patriarca podia ser Oliveira Salazar, Augusto Pinochet, Fidel Castro ou José Eduardo dos Santos. É o retrato da solidão dos ditadores, rodeados de pessoas que têm receio de lhes confidenciar o que realmente está a acontecer. Acredito que isso também esteja a acontecer em Angola.
Tem dito que não há meias ditaduras, nem meias democracias.
JEA: Não há meios termos. É verdade que a ditadura angolana não é tão sangrenta como foi a de Agostinho Neto. Mas não deixa de o ser.
Mais tarde ou mais cedo haverá esse encontro com a realidade que se vive nas ruas?
JEA: Acho que o Presidente vai acabar mal.
Está a construir o seu próprio fim, que só pode ser uma tragédia. Podia ter saído há muito tempo, de forma elegante e preservando a sua riqueza pessoal. Começa a ser tarde demais.
Vê com esperança o futuro de Angola?
AF: Sim. Há muitas páginas novas a serem escritas. Não tenho uma visão maniqueísta…
Tudo é mais complexo e subtil e por isso tão difícil de resolver. Há problemas históricos e económicos e falta de vontade política para os resolver. Mas estou otimista. Algumas janelas vão-se abrindo.
E se não se abrirem temos de ser nós a escancará-las, construindo, pouco a pouco, através da cultura e de um ativismo mais assumido, o país que queremos.
(Artigo publicado na VISÃO 1232, de 13 de outubro)