O dia 23 de dezembro de 1888, quarenta e oito horas antes de um Natal friorento, Vincent van Gogh cortou a sua orelha esquerda a golpes de lâmina, transformando a zona inferior do lóbulo num rendilhado macabro. Esse gesto foi o toque de finados da delicada saúde mental do pintor impressionista, e o primeiro dos muitos esgotamentos que o derrubaram nos dezoito meses seguintes, e que antecederiam a sua morte prematura, aos 37 anos. Numa carta então enviada a Theo, o irmão mais novo que sempre lhe demonstrou uma devoção inquebrável, esmiuçada em afetos e dinheiros a fundo perdido, e com quem manteve uma relação epistolar invulgarmente cândida, escreveu estas palavras: “Eu já sabia que se podiam quebrar os nossos braços e pernas e depois melhorar, mas não sabia que se podia partir a mente e sentirmo-nos melhor a seguir.”
Vincent, holandês habituado a heranças calvinistas, estava, até ter acontecido o bizarro evento anatómico, mais preocupado com a intensidade da arte do que com o desfalecimento dos nervos: vivia em Arles desde o início do ano, mergulhado num furor criativo que o fazia querer pintar tudo o que via, inspirado pela paisagem francesa, toda ela derramada em cores e curvas vibrantes. O pintor afadigava-se pelos campos de trigo alto, sonhando com uma comunidade de artistas que ocupasse a espaçosa Casa Amarela da Rue Lamartine, onde vivia. E quando, em outubro, Paul Gauguin caiu à sua porta, rodeado de folhas para desenhar, Vincent acreditou que o sonho iria concretizar-se. Envia nova missiva para Theo, datada de 25 de outubro de 1888, com uma premonitória declaração: “Como soubeste pelo meu telegrama, Gauguin chegou de boa saúde. Ele até me deu a impressão de estar em melhor forma do que eu.”

Pulsão criativa. Os últimos meses de vida de Van Gogh foram trabalhosos, ele pintava tudo o que o rodeava: a Casa Amarela na Rue Lamartine de onde os vizinhos o quiseram expulsar, o dormitório do hospital de Arles, o médico Félix Rey, os campos de trigo, ou este The Garden of the Asylum (1889), o jardim do asilo…
Maurice Tromp
O francês Eugène-Henri-Paul Gauguin (1848-1903), cabelo escorrido de poeta romântico e longo bigode aparado, que deixara para trás uma carreira de corretor da bolsa de valores, há de desiludi-lo, há de renegar o Impressionismo em 1887, e há de preferir regressar a uma arte primitivista, povoada de lânguidas representações de vahinés de seios nus e flores nos braços que ele pintará até morrer, na exótica Polinésia. Mas, por agora, quando se sentam para debater a arte, os copos tilintam alegremente. À harmonia destes primeiros tempos, sobrevêm discussões sombrias como noites sem estrelas. Vincent acreditava que era importante pintar a partir da realidade, Paul enfrentava o cavalete professando a religião da imaginação. Famosas e reveladoras são as pinturas das cadeiras, efetuadas por Van Gogh para simbolizarem as conversas dos dois artistas: a sua é um tosco esqueleto de madeira e vime amarelo vivo, contrastando à luz do dia com a tijoleira vermelha, e onde repousa um simples cachimbo; a cadeira de Gauguin é um exemplar sofisticado, noturno, de braços burgueses, com uma vela e livros pousados.
Novas revelações
Antes do Natal, desaba a zanga sem retorno. Na ressaca, Van Gogh mutila-se. A orelha cortada transforma-se num episódio enigmático, com muitas versões e contraversões, e numa entrada ilustre do anedotário da arte moderna ocidental. Esse enigma é precisamente o epicentro da exposição On the Verge of Insanity [No limiar da insanidade], patente até 25 de setembro no Museu Van Gogh, em Amesterdão. É, em si, um feito inédito: é a primeira mostra dedicada à saúde mental do pintor, nome maior das artes plásticas modernas que, em vida, apenas vendeu um único quadro. Mas as pinceladas vigorosas e a paleta de cores opulentas, transmitindo uma visão profundamente emocional sobre a natureza e os homens, originaram telas tão reconhecíveis como Starry Night (Noite Estrelada, 1889), Sunflowers (Girassóis, 1887), The Bedroom at Arles (O Quarto em Arles, 1888), Irises Saint Remy (Íris em Saint Remy, 1884) ou os vários autorretratos, com chapéu de palha ou olhar triste, com orelha ou sem. Reza o folclore que Claude Monet, outro impressionista apaixonado por flores, terá dito a Van Gogh que este pintava “como um louco”. E é a loucura que se deseja questionada em On the Verge of Insanity, exposição com cerca de 25 pinturas e desenhos datados do último ano e meio de vida do artista – as obras que revelam a via-crúcis final.

Maurice Tromp
A estas obras, junta-se um acervo documental, em muitos casos inédito, que inclui cartas originais, relatórios médicos, petições dos vizinhos de Arles a pedir que o pintor seja internado, documentos secretos, e até o revólver (ver caixa) que se crê ter sido a arma com que Van Gogh terá tentado suicidar-se, em Auvers-sur-Oise, a 27 de julho de 1890 – sobreviveria apenas mais dois dias à bala alojada no peito.
A mostra pretende clarificar as circunstâncias da automutilação, mas também cruzar informações que diagnostiquem, mais ou menos definitivamente, as circunstância do suicídio e a condição psiquiátrica instável e misteriosa de Vicent van Gogh. Está inclusive previsto um simpósio de especialistas, agendado para 14 e 15 de setembro, em que se analisará o vasto arsenal de doenças então atribuídas ao pintor: epilepsia, distúrbio bipolar maníaco-depressivo, esquizofrenia, melancolia, alcoolismo… Mas a documentação patente revela que, nos intervalos entre as crises que faziam o pintor ficar confuso durante dias (ou semanas), ele pintava incansavelmente. Aliás, após sair dos vários hospitais mentais, Van Gogh chegou a criar uma pintura por dia…
Muitas das revelações apresentadas na exposição – e a própria realização da mesma – devem-se a Bernardette Murphy, autora do livro Van Gogh’s Ear: The True Story [A Orelha de Van Gogh: A História Verdadeira], publicado em julho de 2016 pela editora Chatto & Windus, que, durante sete anos, tentou perceber se Vincent van Gogh cortou realmente a sua orelha esquerda com uma lâmina, e quais as razões verdadeiras do seu suicídio.
A pesquisa conduziu-a até uma pequenina prova, perdida há anos nos Arquivos Irving Stone, em Berkeley, na Califórnia. Tratava-se de um documento desenhado por Félix Rey, o médico que tratou Vincent no hospital de Arles e que acreditava que Van Gogh sofria de uma forma de epilepsia, causada por pouca comida, café e álcool em excesso. O bom doutor nunca fará um diagnóstico oficial, mas merecerá um retrato agradecido do pintor, que é uma das obras-primas reveladas em On the Verge of Insanity (um empréstimo do Museu Pushkin, de Moscovo). Mas Félix Rey desenhou um diagrama detalhado da orelha cortada, numa nota enviada ao escritor Irving Stone, em 1930, demonstrando a violência do golpe e a vontade de cortar por completo essa parte do corpo – uma prova revelada tanto na exposição como no livro.

Maurice Tromp
Documentos novos
Nos papéis inéditos expostos há um recorte de jornal posterior aos acontecimentos. Uma “Chronique locale”, que noticia que no domingo, às 11 horas e meia da noite, o pintor apresentara-se na “maison de tolérance nº 1” (um bordel local), chamara por “Rachel” e entregara-lhe a sua própria orelha: “Guarda este objeto preciosamente. Pois ele desapareceu.” Informada da ocorrência, a polícia apresenta-se na manhã seguinte, “encontrando o indivíduo deitado na sua cama, não dando sinal de vida”. Conclusão: “Foi levado de urgência ao hospício.”
Rachel não é o nome da recetora do bizarro presente, que, durante mais de um século, permaneceu um segredo – inclusive no livro de Bernardette Murphy. Até agora. O jornalista Martin Bailey do The Art Newspaper anunciou, em julho, que, depois de investigações no Institut Pasteur, em Paris, sabia quem era a menina a quem Vicent van Gogh ofereceu a orelha cortada, em dezembro de 1888: Gabrielle Berlatier, filha de um camponês, “uma vítima inocente de um cão raivoso” que pagava os tratamentos médicos através do trabalho como empregada de limpeza no bordel da Rue du Bout d’Arles, onde encontrou Van Gogh de objeto cortante em punho. Gabrielle guardou a oferenda e silenciou o acontecido. Gauguin abandonou o ex-amigo à sua sorte, partindo no dia de Natal.
Van Gogh não é caso único: as ligações sangrentas entre arte e loucura sempre existiram. Francis Bacon (1909-1992), por exemplo, foi alvo de espancamentos consentidos por parte de amantes. O mestre do realismo Caravaggio (1571-1610) era um delinquente irascível, envolvido em brigas constantes, sempre armado com punhal e espada, e presença familiar nos registos policias dos séculos XVI e XVII. Benvenuto Cellini (1500-1571) matou três homens e tinha um gosto particular por facas, e Bernini (1598-1680), mestre da estatuária, mandou o criado esfacelar o rosto da amante infiel.

Arquivo confidencial On the Verge of Insanity revela documentos inéditos: cartas trocadas entre os irmãos Van Gogh, correspondência entre pintor e médicos, relatórios clínicos, abaixo-assinado dos moradores de Arles a pedir o seu internamento, os cartões funerários que comunicaram a “perda” de Vincent Willem van Gogh, aos 37 anos
Em dias mais recentes, o artista contemporâneo Carl Andre (1935) foi a julgamento, acusado de ter empurrado de um 34º andar, a mulher, também artista plástica, Ana Mendieta. O historiador de arte Hans Sedlmayr, apelando ao contexto de um século que produziu personagens estranhas e destrutivas, onde inclui Vincent van Gogh, escreveu no ensaio A perda do centro: “No século XIX havia ao mesmo tempo um novo tipo de artista sofredor: o solitário, perdido e desesperado à beira da loucura. Era um tipo que anteriormente só acontecia, e só às vezes, em instâncias isoladas. Os artistas do séc. XIX, de grandes e profundas mentes, têm muitas vezes o caráter de vítimas sacrificiais, de vítimas que se sacrificam a si próprias (…) Todos eles sofriam pelo facto de Deus estar remoto, e ‘morto’, e o Homem degradado.”
Também Ingo F. Walther e Rainer Metzger, autores do volume biográfico Van Gogh (Taschen, 2000), defendem que a “enfermidade de Van Gogh era a maladie du siècle”, e que o pintor tinha uma “incansável ambição pelo reconhecimento” – mesmo que este fosse através da imagem do “génio isolado”. “Se alguma vez houve um génio contra a sua própria vontade, esse foi Vincent van Gogh”, declaram. À luz das descobertas agora reveladas na exposição On the Verge of Insanity, ainda há muito por perceber no pintor dos sóis radiosos que, no fim, escolheu a escuridão.

A arma que substituiu o pincel? Há fortes indícios de que este revólver Lefaucheux enferrujado, encontrado na década de 1960 num campo de Auvers-sur-Oise, local onde Vicent van Gogh se suicidou, e mostrado na exposição On the Verge of Insanity, poderá ser a arma que o pintor disparou contra si próprio
Heleen van Driel
CURIOSIDADES
O primogénito
Vincent Willem van Gogh era o mais velho de seis imãos, filho de Theodorus van Gogh e Anna Cornelia Carbentus, pastores protestantes. Na juventude, o artista quis seguir Teologia mas chumbou nos exames de admissão. Acabaria por ser missionário na Bélgica, tendo conhecido a pobreza das minas de carvão.
Irmãos e amigos
Theo, o irmão mais novo que seria marchand de arte, era quem financiava telas e tintas para Vincent poder pintar. Van Gogh escreveu-lhe mais de 700 cartas, já publicadas. Theo morreu, seis meses depois de Vincent, vítima de “complicações sifilíticas e de tristeza”, diagnosticaram os médicos.
Tragédias familiares
O bisneto de Theo partilhava o seu nome: Theo van Gogh, realizador de cinema, foi assassinado em novembro de 2004, em Amesterdão, por um fanático islâmico.
À luz das velas
Vincent van Gogh gostava de pintar em pleno campo, durante a noite. Para iluminar a tela, costumava usar uma fileira de velas acesas na aba do chapéu.
Pintor prolífico
Ao longo de uma década de trabalho, Vincent pintou cerca de 800 quadros, 80 destes nos últimos dois meses de vida.
Recordes de vendas
Reza a história que o pintor vendeu um único quadro durante a sua vida. Mas inúmeras obras suas, postumamente vendidas, têm atingido somas recorde. O valor de venda mais elevado de um van Gogh foi atingido pelo quadro L’Allée des Alyscamps, num leilão da Sotheby’s, em 2015: 66,33 milhões de dólares.
Material desconhecido
Um caderno com desenhos inéditos do pintor, recentemente descoberto e de autenticidade confirmada por especialistas na obra, terá uma edição internacional em novembro, com o título Vincent van Gogh. Le Brouillard d’Arles, carnet retrouvé, anunciou a editora francesa Le Seuil.