
Luís Barra
A adolescência é uma montanha difícil de escalar. Chega às nossas vidas como uma vertigem. Este é o tema de Montanha, primeira longa-metragem de João Salaviza, 31 anos. Já premiado nos festivais de Cannes e Berlim, respetivamente pelas suas curtas Rafa e Arena, agora conta-nos a história de David, um miúdo de 14 anos meio perdido numa Lisboa geométrica e vazia. O filme foi recebido com entusiasmo, em setembro, na Semana da Crítica do Festival de Veneza. Chega às salas portuguesas nesta quinta-feira, 19 de novembro.
Porque retomou o tema da adolescência?
Montanha tem a ver com uma busca que já me interessava desde Arena [de 2009] e que teve seguimento no Rafa [de 2012]. Depois do Rafa senti que poderia ir mais longe… Percebi que a duração de uma curta já não me permitia explorar a história de um corpo em transformação como eu queria. Por isso tive a ideia de fazer uma longa muito simples, concentrada num único protagonista como já acontecia nas curtas. A história do David é contada por uma sucessão de ações comprimidas em três ou quatro dias.
No filme encontra-se uma certa geometria dos lugares que já estava nas suas curtas, com a arquitetura daqueles prédios dos anos 60…
O bairro dos Olivais, onde se passa o filme, é uma espécie de país que ficou por cumprir. Um bairro dos anos 60 que foi construído como uma utopia, onde pessoas de diferentes classes sociais podiam viver juntas. Hoje é um bairro que está vazio de miúdos, jovens e adolescentes. Por isso apeteceu-me muito ver o David a circular por aqueles prédios. É um fantasma a transitar por um bairro vazio e isso reforça os sentimentos de solidão e angústia que o miúdo e a família vivem e que atravessam todo o filme.
Montanha é um filme sobre as “dores de crescimento”. Há a «idade dos porquês», este é um filme sobre a “idade do não sei”?
Sim, o miúdo diz aí umas cinco vezes “não sei”… Este filme é o encontro de dois desejos: filmar memórias, que começam já a ser distantes, da minha própria adolescência e cruzar esse registo semiautobiográfico com a existência real do David, que trouxe imensas coisas da vida dele para o filme. Filmei o David nesta idade muito precisa: 14 anos, “quase 15” como ele diz. Não o podia ter filmado seis meses antes nem seis meses depois. É um período breve em que os vestígios da infância ainda estão presentes e se antecipa a chegada da idade adulta. Para o cinema isso é muito interessante.
Como é que encontrou e escolheu estes atores?
Isto de filmar tem muito a ver com a natureza das pessoas que colocamos à frente da câmara. Os castings nos meus filmes são muito informais, pouco convencionais. Escolhi o David do mesmo modo que escolhi os protagonistas de Rafa e Arena. Estivemos cerca de oito meses à procura de miúdos em escolas, clubes, mesmo na rua. O David Mourato foi um dos 300 ou 400 miúdos e miúdas que vimos. A Maria João Pinho escolhi-a porque acho que tem uma presença incrível. Todas as personagens têm uma marca de adolescência, incluindo a da Maria João, que serve no filme como uma espécie de contraponto, antecipação do que o David vai viver.

Ao longo de dois anos, estrearam-se 35 filmes portugueses no Cinema Ideal. Esta sexta-feira, 26, será exibido Montanha, de João Salavisa
Como construiu o guião, aqueles diálogos tão naturais? Os atores têm muita margem para improvisação nos seus filmes?
Escrevo algumas coisas mas com a plena sensação de que o que faço é para ser destruído e novamente reconstruído em camadas de coisas, como os corpos e os lugares… No fim do processo há uma escrita com imagens e palavras que não são necessariamente as minhas. As deambulações da adolescência não têm de começar no ponto A e terminar no ponto B. São os atores que de alguma forma corrompem as minhas ideias iniciais e trazem para o filme uma verdade que é aquela que me interessa, a deles e não necessariamente a minha.
As cenas dos beijos são particularmente bonitas, foram muito encenadas?
Filmar um beijo é uma coisa tão complicada para os atores como para mim. Ponho-me a pensar, como faço isto? Qual a distância certa? Como traçar uma linha da qual não posso passar? Um dos mistérios da adolescência passa precisamente por fechar as portas aos adultos, ter coisas escondidas nos bolsos, fazer saídas à noite às escondidas. E queria muito que o filme conservasse esses mistérios.
Esses mistérios parecem-me bem refletidos na passagem dos lugares mais escuros para a luz, do apartamento para a rua…
Há uma ideia em relação à luz que vem do cinema clássico. Fúria de Viver [filme de Nicholas Ray, de 1955] é uma referência para mim, como outros clássicos dos anos 50. São filmes em que há esta sensação de que a noite é o lugar onde os adolescentes podem surgir porque estão escondidos. E nesse esconderijo podem finalmente revelar pequenas zonas de intimidade. Não queria fazer mais um filme de adolescentes com a câmara na mão e pretensões hiper-realistas como o Kids, do Larry Clark… Montanha propõe um mundo de cinema, ficcional, às vezes quase teatral. O trabalho da luz contribui para esta rutura com uma proposta naturalista.
Há um texto no catálogo da Semana da Crítica referente ao filme, que lhe chama Al Luna Park della Vita. A adolescência é o parque de diversões da vida?
A adolescência é talvez a única idade das nossas vidas em que a angústia e a felicidade caminham lado a lado. Lembro-me de que depois do funeral da minha avó fui ao estádio ver um jogo de futebol. Tinha 14 anos. Saí de um funeral e fui para a euforia de um jogo de futebol… No Montanha há também essa tentativa quase desesperada, uma urgência de felicidade e experiência. Ao mesmo tempo há como que uma sombra muito pesada que é essa antecipação da morte do avô do David. Quando o filme acaba, o David é outra pessoa. Suspira de alívio quase pensando que daqui para a frente vai mudar.
O filme parece quase intemporal. Mas está lá, de certo modo, o Portugal de hoje?
É verdade que não há tecnologias, telemóveis ou Facebook. O meu desejo a partir de certa altura foi o de aproximar-me mais do David. Há uma relação de afeto que eu quis materializar no filme. Apeteceu-me que o filme virasse as costas ao País como o País vira as costas a estes miúdos. A presença do Portugal de 2015 está lá através de vestígios… Filmo as instituições através da sua invisibilidade. Há uma rejeição do contracampo na cena com a professora na escola, na conversa com o médico mo hospital… Há apenas vestígios dessas instituições. Estamos a assistir ao desabar de qualquer coisa, que não sabemos muito bem no que vai dar. Há um gesto quase político desta geração, embora seja inconsciente, ao dizerem “não me interessa este País”, “não me interessam estas escolas”, “não me interessam estes hospitais”, “não me interessa nada”…
Na conversa com professora o David acaba por dizer: “Não me interessa o futuro desde que tenha uma cama e comida”.
É a postura dele. Essas coisas de que se fala agora muito, do vazio de valores e dos antagonismos intergeracionais são hoje muito fortes porque os pais já não conseguem propor um modelo aos filhos. Não vale a pena insistir naquele modelo do «tens de estudar para seres bom aluno, para a vida te correr bem», isso já não funciona. Ninguém é capaz de garantir a essa geração que vai tudo correr bem e que vão alcançar os seus objetivos. Ao mesmo tempo há uma coisa que acho fascinante nessa geração que é um desejo de viver a vida com uma intensidade indiferente às expectativas de um futuro organizado e próspero. Os dramas do David na escola ou no hospital são a última das suas preocupações. A paixão pela melhor amiga, o desejo de roubar a moto, ou aquela cena na Piscina dos Olivais são paradigmáticas.
A cena da piscina com as obras paradas é muito forte…
A Piscina dos Olivais aparece como um símbolo. Está em obras, esteve vários anos abandonada e não se percebe o que vai acontecer ao local onde os três miúdos viveram parte da sua infância e outros verões. Essa cena em que a câmara se afasta e eles continuam ali a cantar representa o desencanto com que começam a confrontar-se, mais cedo do que estavam à espera. Essa cena é, se calhar, aquela onde eu mais sinto que se vê o Portugal de hoje.