E onde está o Django quando nós precisamos dele? Passamos os 12 anos de escravo à procura de um escape, de um ponto de fuga, de uma pequena sensação de alívio, de um justiceiro, mas a História não nos dá saída. E o Cinema nem sempre se pode vingar da realidade, como Quentin Tarantino fez por duas vezes, de forma exemplar, em Sacanas sem Lei e Django Libertado. Em 12 Anos de Escravo, a realidade é um prato que se serve frio e nu. Brancos, negros, europeus, americanos somos todos acorrentados, vergastados, explorados, quase mortos e não há Django nem Dr. Schultz que nos salvem, nem o Tarantino que rescreva a história. 12 Anos Escravo é possivelmente o mais cru dos filmes que já se realizaram sobre a escravidão nos Estados Unidos, a realidade a doer na pele. Trata-se do primeiro filme ‘industrial’, a primeira grande produção realizada por Steve McQueen, fotógrafo e artista plástico britânico, que se habituou a esculpir pequenas obras primas no cinema. Parte de um clássico da literatura negra norte-americana, a autobiografia de Solomon Northup (que na verdade teve David Wilson como ghost writer), publicada em 1853. Uma incrível história de um violinista negro, nascido livre e residente em Nova Iorque, que foi raptado e tornado escravo no Lousiana. Não se trata de uma obra literariamente rica, mas antes de um relato bastante factual, em que o autor se propõe a “revelar de forma cândida e verdadeira os factos, repetindo a história da minha vida, sem exageros, deixando que outros determinem, o que nestas páginas representa um quadrou mais cruel e errado ou da mais severa escravidão” Por isso, o próprio livro é um retrato realista, em que o autor, apesar de ser vítima da brutalidade de um mercado hediondo, assume um compromisso de imparcialidade. E, na verdade, consegue-o. O filme é fiel ao livro, naturalmente com pequenas modificações cirúrgicas, mas dando densidade aos ‘vilãos’, uma graduação das bestas, justificando alguns vis atos pela vileza das circunstâncias, como é o caso do fazendeiro Ford, que até se mostra sensível e protege Platt/Solomon, mas vê-se forçado a vendê-lo. A ignominia ‘branca’ do sul é uma questão de mentalidade (que em casos extremos se arrastou até aos nossos dias), visível em pequenos pormenores. Quando a escrava Eliza chega à fazenda chorosa porque foi separada dos filhos, a Senhora Ford compadece-se e diz-lhe que vá descansar e que não se preocupe porque brevemente se esquecerá das crianças. A grande base da eficácia do filme, contudo, não reside na densidade dos vilãos, mas antes os dados adicionais de identificação com o protagonista, que encurtam possíveis e naturais distanciações em relação a um negro que viveu na América do século XIX. A primeira é logo o facto de Solomon ter nascido livre, o que amplia a dimensão da tragédia, porque como diz o povo, mais infeliz do que quem nasceu cego, é aquele que já viu e deixou de ver. Alem disso Solomon é-nos apresentado segundo o estereótipo da família média burguesa contemporânea: dois filhos, uma casa, um bairro harmonioso. E, como se dúvidas não restassem, mais próximo do fim, no único debate filosófico sobre a matéria, Bass (Brad pitt), a mais humanista das personagens (não por acaso é um canadiano), diz que não há qualquer justiça no esclavagismo e que as leis estão sempre a mudar, e quem um dia é ‘senhor’ no dia seguinte poderá ser escravo. É implicação total e definitiva. Bass funciona assim como um Django moral, que não dispara pelas personagens odiosas, mas que, pelo menos, diz-lhes o que nos vai na alma. Do filme, fica, todavia, uma grande sensação de injustiça. Uma injustiça irreparável. Se a ordem tivesse sido a inversa, Django seria a grande explosão de alívio, o choque de adrenalina, o êxtase vingativo. Assim, assistimos ao lado A de um pedaço lamentável e terrivelmente recente da história da América. Para memória futura e presente. Para que a humanidade se humanize. O fotografo e artista plástico Steve McQueen realizou Fome (2008) e Vergonha (2011), obras maiores do cinema independente da última década. São filmes perfeitos, de uma qualidade estética exemplar, que aproximam o cinema das artes plásticas. 12 Anos Escravo foi um desafio maior ou, se quisermos, uma cedência ou uma experiência, de uma grande produção, ao estilo de Hollywood, com os Óscares em mira. Já não é um arte-filme. Tem outros objetivos, alarga a audiência e os gastos de produção. Obviamente, não há o mesmo deslumbre estético das primeiras obras. Mas McQueen surpreende pela forma como mantém uma certa integridade artística num outro género de cinema. Exímio perfeccionista, não deixa pormenores ao acaso. Tudo no filme é exímio. Fotograficamente é inatacável, o argumento é construído com rigor, sem qualquer tipo de deslize e a vastíssima equipa de atores é magnificamente dirigida. 12 Anos Escravo é um filme desenhado para os Óscares E, até agora, o grande favorito. 12 Anos Escravo, de Steve McQueen, com Chiwetel Ejiofor, Michael K. Williams, Michael Fassbender, Brad Pitt, 134 min
12 anos escravo DJANGO NÃO VAI CHEGAR
E onde está o Django quando nós precisamos dele? Passamos os 12 anos de escravo à procura de um escape, de um ponto de fuga, de uma pequena sensação de alívio, de um justiceiro, mas a História não nos dá saída.