Num dos mais famosos sketches da série Gato Fedorento, pergunta-se a um vidente africano se alguma vez foi a África. Ele responde: “A Amadora conta?”. Encontramo-nos com Miguel Gomes, na Luanda… a pastelaria da Avenida de Roma. Também poderia ter sido no bairro das Colónias, ou nos Olivais, onde as ruas ganharam os nomes de cidades do ex Ultramar. Lisboa é, até certo ponto, africana, mas sobretudo nas memórias. Memórias que ganham vida, mesmo para quem não as viveu. Aliás, tornam-se uma outra coisa, um território do imaginário, de um sonho distante. É esse o luxo e a ousadia de Miguel Gomes: retratar uma ideia de África importando-a para o campo da ficção, com imensa liberdade.
Tabu, que já intitulou de filme old fashion, tem acumulado prémios. Depois do sucesso em Berlim, em que recebeu os prémios da Crítica e o de Inovação, chegando a ser considerado favorito para o prémio principal, foi já distinguido no Festival de Las Palmas. Juntamente com Sandro Aguilar e João Nicolau, Miguel Gomes é a face mais visível da que já foi apelidada de “geração curtas”, que se revelou no Festival de Vila do Conde e na produtora O Som e a Fúria. Após um percurso pela crítica, estreou-se como realizador com a curta-metragem Entretanto, em 1999. A Cara que Mereces foi a sua primeira longa, seguindo-se Aquele Querido mês de Agosto, um filme de verão, muito bem recebido em Portugal e no estrangeiro. Tabu parece abrir novos caminhos. Em entrevista, explorámos o filme.
JL: Já tinhas estado em África antes de fazeres o filme? Que África é esta?
Miguel Gomes: Apesar da minha mãe ter nascido em Luanda, a primeira vez que lá estive foi para fazer a repérage de Tabu. não tenho qualquer outro tipo de ligação a África. Este talvez seja o primeiro ‘tabu’ do filme: achar que tenho o direito de tratar de algo que está tão próximo no tempo, sem nunca ter vivido nessa sociedade, e transformar essa relação em imaginário.
Mesmo para quem nunca a viveu, a ideia de África está sempre presente em Portugal de forma quase mítica.
Estamos a conversar num café chamado Luanda e este bairro onde vivo, que nasceu nos anos 50, arquitetonicamente tem uma relação com Moçambique. Na primeira parte do filme, mostra-se essa presença africana em Portugal. Estávamos a filmar uma cena junta à Expo e há uma instalação com uma girafa. A passagem da primeira para a segunda parte é feita num centro comercial no Cacém, bastante peculiar, porque a parte central está ocupada por uma tentativa algo kitsch de reconstituição de uma selva. Contaram-me que esse centro comercial foi criado nos anos 70 e naquela zona vivem muitos retornados. Há ali um espaço de nostalgia, numa recriação impossível.
Essa presença é ainda mais evidente na personagem Santa, uma negra que faz de mulher-a-dias…
Há uma relação ambígua entre Aurora e a sua criada, Santa, de que pouco se sabe. Aurora é tirana e tem ataques racistas, mas por outro lado tem medo de Santa. Havia mais cenas com Santa, mas tirei muita informação, percebi que a personagem era tanto mais forte quanto menos se soubesse dela. Santa é uma ilha. Tem uma relação complexa com a patroa. Por um lado, protege-a, por outro não lhe dá a oportunidade de fazer a sua performance. Aurora é como uma velha atriz de teatro, está sempre a impor a sua atuação aos outros.
Pilar, a vizinha, tem aí um papel fundamental.
Apesar de Aurora ser a personagem que se mantém na totalidade do filme, não é a principal na primeira parte. Ela é o centro do universo das outras personagens. Perante ela, Pilar e Santa posicionam-se de forma antagónica. Pilar é uma católica progressista muito dedicada a ações sociais, com a tarefa inglória de fazer face às injustiças do mundo. Santa, pelo contrário, acha que cada um se deve meter na sua vida. Essas duas visões fazem com que as personagens colidam a determinado momento. Unem-se no final da primeira parte para satisfazer o último pedido de Aurora.
Manifestas descrença na fé de Pilar, quando ela aparece a rezar pela saúde de Aurora; e, na cena seguinte, vemos Aurora no hospital. É deliberado?
Ela reza pelas duas. Essa é a primeira vez que inclui Santa nas suas orações. E antes disso diz: “Perdoai-me meu Deus por ser uma pessoa tão tonta”. Terá entendido que a suspeita de feitiçaria em relação à Santa é produto da senilidade de Aurora. Mas respondendo à pergunta, qualquer religião ou sociedade inventa leis. Propõe uma ordem para a comunidade. E é aí que começam a surgir os tabus, os desafios à ordem estabelecida. Não me interessa julgar ou fazer passar uma posição.
Mas a ironia está lá.
Há sempre um lado irónico, mas espero que não seja visto como um julgamento. Nós temos a sensação que as ações de Aurora estão sempre condenadas a um fracasso. Na primeira parte, apesar de existir uma maior consciência política e abertura para os outros, que contrasta com a inconsciência da segunda, isso parece não trazer nada de novo. Pilar assemelha-se à anedota do escuteiro que ajuda a velhinha a atravessar a rua, mesmo quando ela não queria ir para o lado de lá.
Logo na primeira cena, com a estudante polaca, acontece isso… Ela quer bondosamente acolhê-la, mas a polaca esquiva-se, enganando-a…
Essa cena marca o filme. Mal entra está abandonada. É como se tivesse perdido logo ali uma filha. Queria que no filme entrassem personagens banais, que num outro tipo de registo seriam secundárias. Só na segunda parte é que são personagens de cinema, com histórias de amor e ações exóticas. A primeira parte é quotidiana. Quis personagens femininas entre 60 e 80 anos, que, não sendo marginais à sociedade, são solitárias.
No entanto, Pilar recusa a companhia do pintor. É sozinha por opção?
Apesar de ser muito samaritana, há limites. Ela percebe que o pintor é demasiado chato. Mas a grande preocupação é que ele não se ofenda, por isso coloca o quadro que ele lhe ofereceu na parede, apesar de o achar horroroso. Ela quer que todas as relações possam ser harmoniosas. Mas o mundo é cruel, está do avesso.
Esse pintor tem um registo próximo de João César Monteiro. É assumido?
Não foi pretendido. Mas talvez, é um personagem mais cómico… O João César diz-me muito. Em Berlim fiz questão de manifestar essa ligação. Eu reivindico essa filiação no cinema português e acho que só é possível para mim filmar porque existiu uma série de realizadores que, pelo seu talento e pela liberdade, conseguiram manter o ICA e os apoios ao cinema. Eu beneficiei disso. O João César Monteiro marcou-me muito.
A banalidade das personagens sugere-nos que as grandes histórias estão mesmo ali ao virar da esquina, na vizinha do lado…
A ficção existe tanto nas histórias da vizinha quanto nas aventuras africanas. Os aventureiros da segunda parte talvez estejam um pouco fatigados do seu próprio exotismo. Apesar dos corpos serem jovens, a voz é a do narrador da primeira parte, um velho. Convoca-se esse exotismo, mas carrega-se com o tempo. Não é por acaso que a personagem Pilar vai ao cinema recorrentemente. Há uma carência de ficção na vida das pessoas. Pedi à Teresa Madruga para olhar para os outros como se estivesse a ver um filme. Como se tudo à sua volta fossem personagens de cinema. Por outro lado, Santa lê Robinson Crusoe.
E Aurora tem um sonho estapafúrdio…
Tem a ver com algo que transcende a realidade. Um apelo para a ficção que se concretiza mais tarde. Não é qualquer coisa que lhes vai mudar a vida, mas literalmente um filme. É o presente que as personagens recebem na segunda parte: abre-se o tempo e o espaço e assistem a um filme com todas as emoções a que têm direito.
A aventura africana
Apesar de haver alguns traços em comum com a tua obra anterior, este filme, cinematograficamente, também foi uma partida para África…
Cada filme dita as suas leis. E nem sequer tenho que as predefinir. Não sinto que haja uma rutura. Há muitos traços em comum, a existência de duas partes… Vou colecionando materiais que se vão dispondo de uma determinada maneira e que vão fazendo sentido. O desejo do cinema não parte do lado racional. Há uma série de ideias que me fascinam e que vou guardando. Isso tudo vai-se juntando e forma-se o filme.
Mas abandonaste a infância e a adolescência?
Sempre achei isso um bocado sobrevalorizado. Mas a verdade é que quando um filme acaba tenho vontade de fazer outro com coisas contrárias. No Aquele querido Mês de Agosto é o desejo de ficção que comanda. Há um filme para se fazer, parece que nunca vai começar e essa narrativa só começa depois das pessoas a descobrirem no seu universo quotidiano. Aqui não é bem isso que se passa, mas só se pode ir ao passado depois de acumular tempo suficiente. No Agosto antes de serem personagens são elas próprias, aqui tudo funciona mais por oposição. Uma coisa que recuperei da estrutura do cinema mudo, que não tinha medo de jogar com oposições binárias. Em Murnau, há luz e sombra, campo e cidade, paraíso e paraíso perdido. Tentei recuperar essa estrutura em antítese. O tempo da juventude e o tempo da velhice, a possibilidade do amor e da solidão, a consciência e a inconsciência políticas, o colonial e o pós-colonial. Isto perdeu-se no cinema, talvez por se achar que era demasiado simplista, em desfavor de um trabalho psicológico.
O filme tem um prólogo para nos colocar em África. Assim sabemos que havemos de lá chegar.
É um filme a que Pilar está assistir, muito romântico, com um texto quase barroco. Uma história de amor impossível, com fantasmas e exploradores que se suicidam à boca de um crocodilo. Mesmo assim há memória. Uma história de amor frustrado, surge pela primeira vez África e um crocodilo. E tudo isto está a preparar a segunda parte e um clima romântico. No prólogo, acontece sem preparação, de forma excessiva. Mais à frente o filme vai tentar atingir o mesmo clima através da sua construção. É como no Agosto, uma canção do Marante aos 15 minutos parece caricatural, mas depois de conhecer aquele universo, quando a canção surge à uma hora e 45 tem uma outra leitura, ouve-se de forma diferente. Aqui também se convoca o tempo.
Em Portugal contam-se os dias, em África os meses.
Quis que a primeira parte fosse mais factual e clínica. A contagem do tempo é semelhante ao espaço
Há traços africanos em Portugal, mas naquela África a que chegamos também há traços europeus, como a música…
No Agosto usei uma canção do Marante chamada “Mãe”. Descobri depois a versão original feita por uma banda de Moçambique, o Conjunto Oliveira Muge, um grupo dos anos 60. Encontrei-me com eles. Mostraram-me fotografias e as canções que faziam. A primeira vez que se ouve a banda, é a versão desse grupo de um êxito italiano do Festival de San Remo. Tal como a versão do Phil Spector em espanhol Tu serás me baby, o original é gravado pelas Ronettes, é de um grupo do Madagáscar chamado Les Surfs. Mesmo às vezes quando as coisas parecem mais ficcionais são verídicas. Toda essa ideia europeia de espetáculo existia nos anos 60 nas colónias.
Já que estamos a desvendar algumas curiosidades em torno de Tabu, Aurora foi consultora de caça de It will snow again in Kilimanjaro. É uma sequela imaginária de As Neves do Kilimanjaro?
Essa foi completamente inventada, mas é verdade que nos anos 40 e 50 havia uma África território de aventuras. Onde eles iam brincar aos caçadores. Aliás no décor estão fotografias do John Wayne e do Hemingway com os seus troféus de caça. O John Wayne esteve em Moçambique, caçou na Gorongosa.
Há um olhar amoral sobre esta África? O juízo é de quem vê?
A instalação do filme em África, faz-se com o segundo título, Paraíso. Existe alguma ironia, porque o título aparece sobre os criados que estão a limpar o chão da sala e não sobre Aurora. O que é paraíso para uns é inferno para outros, o que não quer dizer que tenha que condenar aquelas personagens, de fazer uma demonstração pedagógica, como se o espectador não fosse capaz de tirar as suas próprias conclusões. Há personagens brancos que se divertem em África sem ter grande consciência do que os rodeia. Manter uma colónia, nos anos 60, quando quase todos tinham dado a independência aos países africanos é tão disfuncional como viver uma história de amor do género Robert Redford e Meryl Streep em África Minha, sendo que ela está grávida do marido e a barriga vai crescendo. Há essa cegueira de não lidar com as consequências, seja ela um bebé ou a inevitabilidade política de dar a independência àqueles países.
Há mesmo uma inconsciência. É coisa que não os preocupa, até quando aparece o militar a avisar sobre uma possível guerra, eles não acreditam muito. Organizam as milícias mais como forma de diversão do que por sentirem realmente o perigo.
Regressando à ideia que trabalho o universo infantil, estas personagens tão bem são algo crianças. Divertem-se a fazer corridas de automóveis e a brincar ao África Minha e a entrar na milícia como quem joga à guerra, sem consciência do que se vai passar. Existe isso. Mas tal não desvaloriza o investimento emocional. É possível estar com as personagens apesar delas estarem a fazer tolices. Nunca senti que tinha de escolher um lado. Sinto-me próximo da frase de Renoir: “Cada personagem tem as suas razões”.
O colonialismo aparece logo no preâmbulo. Ele atira-se ao rio para ser devorado por crocodilos e os indígenas festejam.
É outra vez ambíguo. Será uma homenagem ao seu espírito ou a alegria por estarem livres daquele louco? É como aquela personagem do Agosto que no final chora e ri ao mesmo tempo. Para mim o cinema é mais interessante quando existem materiais opostos. Como as pilhas: é preciso um polo positivo e um negativo para que haja energia.
Um filme quase mudo
Na segunda parte há um narrador em voz off. Não se ouve a voz das personagens, embora haja som ambiente. Porque optaste por este formato?
Sempre houve uma vontade de trabalhar com a memória e com coisas em extinção. É através da morte de uma personagem que surge a sociedade colonial, que é impossível reproduzir. E através dessa invocação, quase como numa sessão de espiritismo, dialoga-se com a memória do cinema: o cinema clássico, por um lado, mas também o cinema mudo. Mas não tentando recriá-lo, como em O Artista, que tenta reproduzir as formas dos anos 20. Em Tabu não perdemos a consciência do nosso tempo, mas tentamos chegar ao passado através do exercício da memória, eliminando os diálogos. Ficaram as imagens, a narrativa, os sons de África, mas as palavras desapareceram. E, retirando essas palavras, subsiste uma espécie de fantasmagoria.
Incomodam-te as comparações com O Artista? Achas que te beneficiam ou prejudicam?
É irrelevante. São dois filmes muito diferentes, partilham o preto e branco, o formato de janela de projeção e momentos em que as personagens falam, mas não se ouve. De resto são duas ideias de cinema diferente. Mas as comparações são inevitáveis. Eu até fui ver o filme para poder responder às questões.
E o crocodilo. Qual é o seu papel? É um animal que vai crescendo até se tornar uma fera?
É um crocodilo melancólico. Uma testemunha, qualquer coisa que se vai perpetuando, ligada à ideia de amores frustrados ao longo dos tempos. E este crocodilo é quase um filho de Aurora e de Ventura.
Desta vez usaste mais atores profissionais do que o costume, apesar de aparecer a equipa e até a tua voz.
A equipa entrou porque no sítio em que filmámos, no Norte da Zambézia, existem aí uns dez brancos. Por isso avisei logo que todos tinham que fazer personagens. Mas quis trabalhar sobretudo com atores profissionais, porque se estava a evocar a história do cinema não fazia sentido de outra forma.
Imagino que a rodagem foi complicada. Foi uma aventura
Sim, apanhámos com tudo. A “troika” chegou a Portugal quando estávamos a partir para Moçambique. Houve vários problemas orçamentais. E qualquer rodagem em Moçambique é dura. Como não era possível manter o que estava escrito no argumento, decidimos improvisar. Os atores não sabiam que cenas fariam. Propus a criação de um grupo, denominado Comité Central, composto por mim, Mariana Ricardo, o Telmo Churro e Bruno Lourenço. Criávamos diariamente uma carta de cenas que íamos colando na parede. À medida da rodagem íamos decidindo o que o filme ia ser. Foi muito generoso da parte dos atores confiarem em nós e ficarem nas mãos do comité central. As condições de rodagem eram más. Não havia infraestruturas, nem hotéis. Estávamos numa missão de padres italianos, tudo aquilo tinha o seu ritmo. Foi obviamente complicado e por vezes frustrante, mas também é assim que me sinto confortável a trabalhar, colocando-me quase diariamente um novo problema. Com a ajuda de uma equipa magnífica. Além de serem bons no que fazem, são de uma elasticidade incrível.
E agora? O que se segue?
Estamos todos à espera de saber se a lei que está em discussão pública é aprovada. Neste momento está tudo paralisado. O ICA está na bancarrota. Vamos lá ver se há vontade política de a aplicar esta lei. Uma das coisas que aconteceu com o desaparecimento do Ministério da Cultura foi uma espécie de desresponsabilização. O secretário de Estado não é o último responsável e não se sabe qual a força política que tem. Desconfio que não é muita. Provavelmente a decisão está nas mãos do primeiro-ministro. Vamos ver o que acontece, porque a situação é gravíssima.
Mas tens projetos?
Estou a preparar uma curta, que partiu de um convite de um festival, mas não foi possível realizar nesse âmbito. Mas, depois de Berlim, encontrei financiamentos estrangeiros que permitirão que o filme vá para a frente. Depois existem várias ideias de outros projetos. Estou ainda a pensar qual será o melhor.
Trabalhas com a produtora O Som e a Fúria, desde a primeira curta. Qual é a relevância da produtora na tua obra e na nova geração?
Nunca pertenci à produtora, porque sempre achei que não ia ter disponibilidade suficiente para ser produtor. Mas o primeiro filme que produziram foi o meu. Recentemente teve uma restruturação grande, com a saída do João Figueiras e a entrada do Luís Urbano. A entrada do Luís foi importante, porque ele tem como único e exclusivo horizonte a produção de filmes. Faltava-lhe essa dimensão, independentemente da boa vontade do João e do Sandro Aguilar. Surgiu num momento profícuo para o cinema português, com mais projetos apoiados. Beneficiou desse clima. Hoje seria impossível. Manteve uma característica bastante produtiva: uma relação em que é dada independência criativa aos realizadores. Embora haja sempre um lado de ‘luta de classes’ entre realizador e produtor…
Está ligada (a produtora) a uma geração de cineastas?
Sem dúvida. Mas o último filme que produziu foi o do Oliveira.