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Um crocodilo chamado Dundee
O filme de Miguel Gomes é muitas coisas. Entre elas será uma espécie de jogo de snooker em que as bolas deslizam no pano verde, tocam umas nas outras mas ninguém sabe quem dá a tacada. O mais curioso é que esse ser impulsionador da ação não nos interessa nada. Interessa-nos apenas o que está em jogo, e aquele movimento que produz outro e ainda outro… Às vezes, uma bola faz ricochete e transmite a energia a uma terceira. Outras vezes, a bola pode ficar a rolar sem consequência, ou encestar e sair rapidamente de cena. Outro aspeto encantador em Tabu é o despojamento da tralha sentimental, a completa destituição da pieguice (palavra aqui usada sem qualquer subtexto), da estafada nostalgia africana, do saudosismo bacoco colonial… As bolas rodam na vida, tocam umas nas outras, isso traz consequências ou não. É tudo. Mas não só. O filme assume duas partes, que em bom rigor são três: uma primeira sequência (um prólogo, talvez) assumidamente “melo-caricato”, acentuado por um piano muito assertivo e encantatório, em que um “intrépido explorador” carrega o desgosto da perda da mulher, se submerge em “turvas águas” e é tragado por um crocodilo, perante o olhar horrorizado dos nativos, também eles carregadores. O crocodilo passou carregar um explorador na pança e o fantasma de uma dama antiga à sua beira. Todas as personagens carregam alguma coisa em Tabu. A vizinha solícita e solitária (Teresa Madruga) – é uma das bolas que recebe uma tacada, acerta noutra e fica a rolar sem consequência – carrega o peso do mundo e da piedade. A velhota excêntrica e senil que dissipa o dinheiro no casino (a fantástica Laura Soveral) carrega o peso do abandono, de uns sonhos bizarros que envolvem macacos (ou serão homens peludos?) e o de um segredo amoroso no seu passado colonial. A também velha criada, importada de África carrega o peso do desenraizamento, da iliteracia (está a aprender as primeiras linhas em Daniel Defoe, Robison Crusoe, o homem-metáfora para a solidão) – esta também é um das bolas que ficará para lá a rodar e nem se percebe se passa a sua energia a mais alguma. Só na segunda (terceira?) parte conhecemos a “prequela” desta velhota senil, sem diálogos, com a narração em voz off da sua juventude (Ana Moreira) africana, passada em Moçambique, mas que podia ser numa outra África qualquer. E aí há um crocodilo romântico, um búfalo abatido, uma savana, um marido muito expressionista, um adultério, um crime, uma banda dos anos 60. Ninguém vai a África pela primeira vez, todos temos uma ideia prévia na cabeça, filtrada por narrativas ficcionais ou reais. A África de Miguel Gomes é apenas o pano onde rolam as bolas. Ah, e também é a preto e branco.