No ano passado, Estado de Guerra, da americana Kathryn Bigelow, acompanhava uma brigada de desmantelamento de explosivos no Iraque. E fazia-o de uma forma tão subtil, tão contida, tão diluída e singular como uma marca de água. E no entanto, rebentou como uma bomba de fragmentação nos Óscares de 2010, e deixou estilhaços por todos os lados. Que atingiram não só os ruidosos e verdadeiramente bombásticos favoritos, dados como “adquiridos”, mas também – e isto é mais importante – estouraram com um certo modo de conseguir a neutralidade nos filmes de guerra, que não é necessariamente uma imparcialidade descomprometida. Mas se o filme vencedor de Bigelow foi um verdadeiro filme-bomba, que nos deixou uma cratera na alma, o filme da dinamarquesa Sussane Bier, Um Mundo Melhor, (estreia-se hoje, dia 7), que venceu o Óscar 2011 para Melhor Filme Estrangeiro, apenas deixa estalar a bomba, tão obviamente estrepitosa e, no final, não fica cratera, nem estilhaços, nem nada. O filme da dinamarquesa acaba por ser, estranhamente, demasiado americano para uma nórdica. Muito mais do que o da própria Bigelow.
Mas, apesar de um tom, por vezes ingenuamente didáctico, ou emocionalmente manipulatório, não deixa de ser um filme estimável, funcional, cheio de elegância e bons momentos visuais e excelentes interpretações. Sobretudo teve o mérito de falar de coisas estruturalmente (e acabaram-se os advérbios, nesta página…) incómodas, como a violência atrevessada de metastases em toda a humanidade, seja no melhor dos mundos, numa Dinamarca, cheia de design, civismo e boas intenções, seja no pior dos mundos, num campo de refugiados, no Quénia, cheio de moscas, miséria e farrapos humanos.
Na verdade, no ano em que uma vaga de umbiguismo invadiu a cerimónia dos Óscares – ora era o rei atormentado pela sua gaguez, ora era a bailarina atormentada pelo seu perfeccionismo (e tal…), ora o boxeur atormentado pela maldição familiar e pelos socos na cabeça, ora alpinista, coitado, atormentado pela sua imprevidência e pelo braço entalado, ora uns brinquendos atormentados por uma crise existencial,- Um Mundo Melhor teve o mérito de se deslocalizar do drama privado e de se focar no universalismo da condição humana. Que não se pode embelezar, nem compadecer, porque é mesmo assim, o homem é o lobo do homem, já toda a gente sabe.
Jet-lag
Sobretudo Um Mundo Melhor tem o encanto de nos provocar uma espécie de jet lag visual, através de um médico sem fronteiras sueco, que transita do espaço asséptico dos meninos louros do primeiro mundo para o espaço poeirento dos meninos negros do terceiro. Enquanto no “lixo ocidental” a violência insinua-se com um bando de miúdos mauzões que esvaziam uns pneus de bicicleta dos outros, e exercem bullyng escolar -, naqueles campos de refugidos apocalípticos, sem a pacificação de um ramo verde que consiga desabrochar naquele solo estéril de fome e inclemência, o médico tenta salvar mulheres grávidas esventradas por um chefe tribal que se diverte a adivinhar o sexo do feto. E daqui até poderia resultar um efeito provocatório interessante de contraste. Só que o filme acaba por explorar o sentimento de culpa ocidental, e explanar a tese de que a violência não escolhe latitudes geográficas. Simplesmente alastra, como uma doença altamente contagiosa, tipo sarna. Mas não deixa de ser irónico como um filme como o de Michael Haneke, Laço Branco, onde se viam as sementes de violência a germinar, de forma lenta e insidiosa, como se dentro de um tubo de laboratório, tenha ficado sem estatueta de Melhor Filme Estrangeiro o ano passado (em detrimento do também excepcional No Segredo dos Teus Olhos), enquanto esta lição, de um convencionalismo dramático assumido, e afinal da moral tão cristã e catequista de dar a outra face, tenha arrebanhado um Globo e o Óscar e uma maior adesão da academia. Irónico, sim. Previsível, ainda mais.