A escolha não era óbvia: um kispo azul da Adidas ou uma guitarra. Pedro tinha uns 13 anos quando os pais lhe perguntaram que presente gostaria de receber. O irmão Luís escolheu a guitarra, ele preferiu o kispo. Hoje, Pedro da Silva Martins, guitarrista, compositor e autor das letras dos Deolinda olha para trás e ri-se da história. Aos 34 anos, não se arrepende da opção que tomou, nem das voltas que deu na vida até chegar a este ano de 2011, em que a banda que criou com o irmão Luís, a prima Ana Bacalhau e o marido desta, José Pedro Leitão, conseguiu esgotar duas noites no Coliseu do Porto e outras duas no de Lisboa e, no final, ainda pôr toda a gente a cantar e a falar sobre a nova música Parva Que Sou (ver caixa). “De kispo vestido, apanhava as sobras da guitarra do Luís”, recorda Pedro. “Sempre levei a música de forma descontraída e descomprometida. E sempre tentei inventar novas melodias. Chegava a gravá-las, mas nunca lhes dei muita importância.” Mais do que tocar, Pedro gostava era de escrever. Da poesia ao humor, rabiscou de tudo. “Passava horas no quarto a escrever. Às vezes, estava a dar um bom jogo na televisão e continuava entretido a escrever, naquelas coisas de adolescência estranha…”
Nos Deolinda, Pedro da Silva Martins é provavelmente o mais tímido e, por isso, aquele que mais facilmente passa despercebido, entre a boa disposição da vocalista Ana Bacalhau e a omnipresença da castiça Deolinda. Mas, ditam as leis da genética, a rapariga de grandes argolas nas orelhas e xaile às costas não seria quem é sem as memórias e as inspirações diárias deste seu progenitor. Filho de uma lisboeta de Benfica e de um beirão de uma pequena aldeia perto da serra da Estrela, Pedro reconhece que foi da fusão destes dois mundos, urbano e rural, que nasceu o som e o tom dos Deolinda.
Não fossem as férias de verão e de Natal passadas em Frádigas e não existiriam músicas como Contado Ninguém Acredita, escrita a recordar as procissões da aldeia. É aí que se lembra de ouvir a avó paterna entoar cantigas populares da Beira ou o avô a tocar concertina. Música nunca faltou na família. Do lado materno, transmitiram-lhe o gosto pelo fado vadio e pelas marchas populares. Nos serões familiares, avós, pais e tios soltavam as cordas vocais, para encanto dos mais pequenos, como ele, o irmão Luís e Ana, prima em segundo grau.
Às portas de Benfica
Foi no café do pai, na Damaia, o Gabizé, que Pedro passou os dias de infância e de adolescência. José tinha vindo muito novo de Frádigas trabalhar para Lisboa (com a mesma idade com que Pedro escolheu entre o kispo e a guitarra) e, anos mais tarde, já casado e pai de dois rapazes com uma diferença curta de 21 meses, conseguiu montar negócio próprio, ajudado pela mulher Gabriela, antes ligada à indústria farmacêutica. Pedro e Luís andavam por ali depois das aulas (moravam na Buraca, aonde só regressavam já tarde), entre as brincadeiras na rua e as ajudas no café. “Muito pequeno, sem saber ler nem escrever, fazia trocos aos clientes na máquina registadora atrás do balcão, em cima de uma grade de cervejas”, recorda. Numa altura em que cresciam os prédios ali à volta, tinham espaço de sobra para correr e entretinham-se a fazer casas com as tábuas de madeira que sobravam das obras, com uma liberdade que hoje já não se usa na cidade.
No Gabizé, Pedro fez as primeiras contas, escreveu as primeiras letras do abecedário e também das suas músicas, habituou-se a conhecer novas pessoas todos os dias, curou constipações e desgostos de amor adolescente, trauteou melodias, apontou letras de canções que lhe vieram à cabeça enquanto ajudava o pai atrás do balcão, ensaiou cantigas à guitarra depois de fechadas as portas do café.
Quando a mãe adoeceu, tinha-se candidatado ao curso de enfermagem, mas, colocado na Guarda, resolveu ficar em Lisboa e ajudar o pai no restaurante. Inscreveu-se em Engenharia numa universidade privada (havia de fazer dois anos) e num curso de escrita criativa e de escrita para televisão e cinema. Aos poucos, foi descobrindo o que gostava de fazer e encontrou o primeiro emprego na produtora Companhia das Ideias (onde conheceu aquela que viria a ser a sua mulher, Leonor Tenreiro). Fez adaptações e argumentos para várias séries televisivas, como Fura Vidas, A minha vida é um desenho animado, A Loja de Camilo, e programas de Marina Mota, e também sitcoms originais para a RTP, que nunca chegaram a ser produzidas. O gosto pela escrita humorística haveria de se revelar também no blogue Diário Semanário – o seu site mensal de notícias, ainda a blogosfera dava os primeiros passos por cá. “Era um jornal humorístico, pré-Inimigo Público, um bocado surrealista, acho que ninguém lhe ligava muito… Durou um ano e tal, mas permitiu-me conhecer várias pessoas ligadas ao humor.”
Canção mais popular
Profissionalmente, Pedro escrevia as rábulas de Marina Mota, enquanto, nos tempos livres, ia inventando canções, que guardava na gaveta ou que, às vezes, mostrava ao irmão e a amigos. Alguns deles conseguiram convencê-lo a fazer um concerto com as suas músicas no auditório da Escola Superior de Comunicação Social, em Benfica, tinha ele pouco mais de 20 anos. “Foi o princípio de tudo, mas nunca pensei que me ia tornar músico profissional”, afirma. Pouco depois, formou o grupo Bicho de 7 Cabeças, que juntava sete músicos à volta dos ritmos tradicionais portugueses. O irmão Luís, que estudara música e entretanto se juntara à banda, ia estando atento: “Tens boas músicas, mas não é nada disto”, dizia-lhe… “O Bicho de 7 Cabeças era uma descompressão dos empregos paralelos que todos tínhamos, era como ir jogar futebol com os amigos. Foi um excelente laboratório para pensar as canções. Descobri que havia um trabalho por fazer em termos de música popular portuguesa e senti uma enorme vontade de o fazer. Acreditava que era possível essa música chegar às pessoas da minha geração.”
Um dia, num concerto dos Lupanar, o grupo em que cantava Ana Bacalhau e em que José Pedro Leitão tocava contrabaixo, Pedro e Luís comentaram: “Era tão bom poder captar este momento em que ela faz uma abordagem mais popular às canções e conseguir ampliá-lo.” Em casa, Pedro decidiu escrever uma música para a prima… e acabou autor de quatro canções pensadas para aquela voz “com um sabor português muito próprio”: Não sei falar de amor, Ai Rapaz, Ignaras vedetas e O Fado não é mau. “Num daqueles almoços de família que duram e duram, na casa do meu pai no Magoito, resolvemos testá-las. Nem tinha pensado incluir-me no projeto, as músicas eram para a Ana e para o meu irmão e eu continuaria com o meu trabalho e as minhas coisas. Mas o José Pedro, que namorava com a Ana, tinha levado o contrabaixo, e eu e o Luís tocámos guitarra e funcionou assim.” O resto da história já nós conhecemos.
Em cinco anos e dois discos, os Deolinda conseguiram um público vasto e heterogéneo que enche, entusiasmado, qualquer sala onde se apresentem. Os fãs levam patinhos de borracha para cantarem a música com esse nome e outros adereços que fazem parte das letras, sabem as cantigas de cor, acompanham-nos em coro. Lá fora também já deram nas vistas e o prémio da revista Songlines é apenas uma das provas de que esta Deolinda já ultrapassou várias fronteiras.
Intuição feminina
Se o sucesso dos Deolinda está naquele som que é fado mas não é, que é marchinha popular mas não só, muitos dos créditos ficam também a dever-se às histórias, ao humor e à forma como se juntam as palavras nas canções, ou à capacidade de reunir num mesmo disco músicas harmoniosas como Clandestino e outras divertidas como Fon-Fon-Fon. Diz Pedro que não tem fórmula certa para as criar. “Faço primeiro a melodia e depois estou uma série de tempo, que podem ser anos, a ouvi-la e a tentar perceber que imagens é que me traz à cabeça. Quando essa imagem surge, construo uma história à volta dela. Mas algumas também aparecem já quase compactadas e depois é só limar as arestas.” Nestas últimas, inclui-se o “hino” Parva Que Sou e também A Problemática colocação de um mastro, nascida atrás do balcão do já famoso Gabizé.
Se tem uma ideia de melodia quando menos espera, Pedro trauteia-a para o telemóvel e, num caderno, vai apontando ideias para depois desenvolver. Às vezes é apenas uma expressão que ouve e lhe fica a martelar na cabeça (como aconteceu recentemente com “casal profissional”), outras vezes quer mesmo falar sobre determinado assunto, como em Movimento Perpétuo Associativo, um dos maiores sucessos dos Deolinda que pôs todos a cantar “vão sem mim que eu vou lá ter”. “Sei que quando parto para uma canção as primeiras 30 versões não são definitivas, tenho que ter paciência.” Se se sente desinspirado, alterna a composição com a escrita e, normalmente, basta mudar de instrumento ou de tipo de letra no computador para sair de um impasse.
Escrever no feminino não lhe causa transtorno. “É um desafio e dá-me imenso gozo. É feito mais com intuição do que de forma racional.” Aliás, foi também no feminino que se estreou a escrever para outras vozes que não a de Ana Bacalhau. No novo trabalho de Cristina Branco, é dele a música escolhida para dar nome ao disco, Não Há Só Tangos em Paris. “Como autor, é estimulante fazer outras coisas e pensar na música de forma diferente do formato dos Deolinda. Acho que a minha escrita para a Deolinda também melhora com estas experiências.” Nos seus arquivos musicais existem várias músicas que não pertencem à rapariga que nos ensinou que “andamos todos numa casa ao nosso lado”. “Essas estão numa espécie de estufa”, revela Pedro da Silva Martins. Não faltarão por aí vozes para as adotar.
Deolindologia
Mais de um mês depois de os Deolinda terem apresentado nos coliseus do Porto e de Lisboa Parva Que Sou, ainda não há dia em que não se fale ou escreva sobre essa canção adotada imediatamente como hino de uma geração descontente – agora nomeada como “Geração Deolinda”. Nasceram até novas palavras, como “deolindologia”, e no próximo sábado, 12 de março, haverá manifestações instigadas pela vontade dessa geração mostrar que não é parva (ver pág. 82). A banda confessou não estar à espera de uma reação tão forte e Pedro da Silva Martins, autor da música, contou que a letra nasceu de uma expressão usada pelo irmão Luís, de cada vez que se engana a tocar. Para Pedro, foi um “exercício de lucidez”, uma “constatação de um problema social que afeta muita gente”. Hoje, constata: “A música transcendeu-nos e ganhou vida própria.” “A canção simboliza um nascimento de um pensamento político individual em alguém que nunca esteve para aí virado. Estou a falar da personagem que a canta, mas acaba por ter um reflexo em quem a ouve”, diz.
“Tem havido uma distorção da música. Quando se descontextualiza uma frase da canção num pensamento há uma desonestidade intelectual em relação àquilo que é a canção, que tem uma ideia, uma narrativa, um contexto dramático. Quando se diz que a frase ‘para ser escravo é preciso estudar’ promove o abandono escolar isso é de uma grande desonestidade intelectual.” Pedro reconhece que escrever uma música como Parva Que Sou é intervir socialmente – não é a primeira vez que o faz e, garante, não será certamente a última. “A música é política. Como dizia o José Mário Branco, ‘se a gente não cantasse, era política na mesma…’ Mas, como artistas, não nos compete apontar soluções; haverá pessoas mais competentes noutras áreas para o fazer.”