Luzes, câmara, ação. A investigação que envolve Luís Filipe Vieira domina, desde quarta-feira, a fatia mediática que abre os noticiários e faz as primeiras páginas de revistas e jornais. A operação, que ganhou a designação sonora de Cartão Vermelho, foi revelada na passada quarta-feira, dia de buscas em Lisboa, Torres Vedras e Braga, que culminou com a detenção do presidente do Benfica – que esta sexta-feira anunciou a suspensão das suas funções no clube – e de mais três pessoas: o filho Tiago Vieira, o empresário e amigo José António dos Santos, conhecido como “Rei dos Frangos”, e o empresário Bruno Macedo (apontado pela investigação como o “testa-de-ferro” de Vieira para desviar dinheiro do Benfica, através do pagamento excessivo de comissões pela transferência de jogadores).
Como tem sido habitual, nos últimos anos, nos principais processos da Justiça portuguesa, também esta investigação do Ministério Público (MP), levada a cabo pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) – e coordenada pelo juiz Carlos Alexandre, pelo procurador Rosário Teixeira e pelo inspetor tributário Paulo Silva –, impôs a detenção, ainda na fase de interrogatório, várias horas antes da inquirição perante o juíz, dos principais envolvidos: Luís Filipe Vieira dormiu as últimas duas noites numa cela do comando metropolitano da Polícia de Segurança Pública (PSP), em Moscavide, tal como já tinha acontecido ao antigo primeiro-ministro José Sócrates, em 2014 – ou também, há duas semanas, a Joe Berardo, que pernoitou nos calabouços da Polícia Judiciária, na Gomes Freire, mas que acabaria por sair em liberdade três dias depois sob caução.
Passadas quase 48 horas, Vieira ainda não conhece as medidas de coação – o MP já anunciou, porém, que vai pedir medidas diferentes do termo de identidade e residência devido à gravidade dos crimes em causa –, mas continua a ser diariamente transportado entre a cela e o tribunal debaixo das objetivas de uma escolta de jornalistas montados em motos. Todos os seus passos são escrutinados: e até o que ingeriu ao pequeno-almoço já fez manchete.
No universo da Justiça, dividem-se as opiniões sobre a opção da investigação. Em causa, está, sobretudo, o ruído que pode fragilizar, perante a opinião pública, a figura da presunção de inocência do detido – que, recorde-se, ainda não está em julgamento. E não só: a detenção prolongada nesta fase processual pode eternizar uma sentença pesada no currículo pessoal e profissional, mesmo depois de uma eventual não pronúncia ou absolvição.
Detenção desadequada, diz bastonário da Ordem dos Advogados
Luís Menezes Leitão tem sido uma das vozes mais críticas da forma como o MP tem atuados nestas circunstâncias. O bastonário da Ordem dos Advogados recorda que “se tem assistido a detenções para interrogatório de pessoas em relação às quais, depois de passarem três dias na cadeia, nem sequer é pedida a prisão preventiva pelo MP”. Recusando falar de casos em concreto, Menezes Leitão revela, no entanto, “preocupação” face a este cenário. “Estarmos sistematicamente a assistir à detenção para interrogatório de pessoas muito conhecidas e, por isso mesmo, que dificilmente poderiam desaparecer. Deter pessoas para interrogatório durante vários dias, obrigando-as a passar noites na prisão, não me parece uma forma muito adequada de proceder”, afirma o bastonário.
Menezes Leitão recorda que“não é por um cidadão estar envolvido num processo criminal que perde os seus direitos e que deve deixar de beneficiar da presunção de inocência. A forma normal de fazer as coisas seria convocar, por notificação, a pessoa para comparecer para interrogatório, com a cominação que seria alvo de detenção caso não o fizesse”.
Evitar a adulteração de provas
António Ventinhas, magistrado e antigo presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), tem outra visão. Embora admita não conhecer, em concreto, o processo em curso, o magistrado recorda que, “em certos casos, a opção pela detenção para interrogatório dos envolvidos justifica-se e é fundamental”. Porquê? “Basicamente porque estamos a falar de casos em que existe perigo de perturbação do inquérito, como a ocultação de provas ou o contacto com pessoas que podem, eventualmente, desviar essas provas. A verdade é que uma pessoa em liberdade tem mais espaço para adulterar as provas e prejudicar a inquérito”, sublinha.
Ainda assim, o magistrado alerta que, nesta fase, “os timings da duração do interrogatório não cabem ao MP, mas à gestão desse mesmo interrogatório. Ou seja, fica tudo nas mãos do juiz de instrução, e do tempo necessário para escutar os detidos. Em relação ao ruído em torno do processo Cartão Vermelho, ou outro megaprocesso mediático, António Ventinhas não encontra forma de contornar a questão: “Se as pessoas detidas são mediáticas, então, naturalmente, o processo será sempre mediático. Por muito que não se queira fazer alarido. A verdade é que o mediatismo de muitas investigações resulta da visibilidade que têm as pessoas visadas, e de todas as suas ações, mesmo as mais quotidianas, terem sempre repercussão junto da opinião pública”. .
Ruídos nos processos mediáticos
O constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia considera que os megaprocessos mais recentes até têm demonstrado que “tem havido um abrandamento da exposição mediática destes casos, pois, agora, já não vemos as pessoas a serem detidas à porta de casa, presas ou a serem transportadas em veículos da polícia”, como, por exemplo, aconteceu com José Sócrates em 2014. “Tem havido esse cuidado das autoridades judiciárias de preservar também a privacidade das pessoas”, diz Bacelar Gouveia.
O constitucionalista admite, todavia, que é inevitável existir algum ruído em torno de processos que envolvam a detenção de figuras mediáticas. Algo que, aliás, não pode travar a atuação do MP – como pensa ter servido de exemplo a detenção de Luís Filipe Vieira. “A presunção de inocência não significa que as autoridades tenham prurido em investigar quando há suspeitas que a justificam. [Em relação ao processo “Cartão Vermelho”] Penso que os procedimentos foram normais, perante a gravidade dos factos que se vão conhecendo”. E qual o papel do detido em caso de inocência? Bacelar Gouveia acredita que, hoje, “a opinião pública tem maturidade para perceber que estas são intervenções ainda provisórias e que a justiça só será feita no fim”. “Isto não é um julgamento, mas apenas diligências que se destinam a desenvolver um inquérito de acordo com o está previsto pela lei e que devem ser respeitadas. O normal, quando se pretende que a pessoa preste declarações, seria notificá-la para isso, mas admito que, às vezes, também pode ser normal deter pessoas para preservar as provas e o inquérito”, conclui.
Recorde-se que a detenção de Luís Filipe Vieira, José António dos Santos, Tiago Vieira e Bruno Macedo, no âmbito do processo “Cartão Vermelho”, aconteceu na passada quarta-feira. O mandado de detenção assinado pelo juiz Carlos Alexandre aponta Luís Filipe Vieira como responsável por “esquemas de fraude” que, desde 2014, lesaram a SAD do Benfica, o Novo Banco e o Estado português em mais de 100 milhões de euros. De acordo com o documento, a investigação acredita que o presidente do Benfica retirou benefícios pessoais “quer em sede de arrecadação de impostos quer em sede de financiamento público ao fundo de resolução e ao mecanismo de acordo de capital contingente”. Os detidos são suspeitos da prática dos crimes de burla qualificada, abuso de confiança agravada, falsificação de documentos, branqueamento de capitais e fraude fiscal qualificada.
Luís Filipe Vieira continua esta sexta-feira a ser ouvido pelo juiz Carlos Alexandre. O MP já anunciou que vai defender a aplicação de uma medida de coação mais pesada do que o termo de identidade e residência devido à gravidade dos crimes que estão em causa – a opção deve passar pela prisão preventiva. Terá a última palavra o juiz Carlos Alexandre.