HISTÓRIAS DE VIDA
Era uma casa cheia de crianças, desde recém-nascidos a adolescentes. Em comum todos apresentavam um olhar vago como quem desiste de si ou não sabe a que lugar pertence.
Eram os filhos de todos os divórcios daquela terra…
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MÃE, MÃE?!…
Sentado num caixote de madeira, bamboleando as pernas ao ritmo de algum pensamento interior, Raul ia observando o movimento desusado do espaço onde há tantos anos habitava com a mãe, o padrasto e as duas irmãzinhas gémeas. Às vezes diziam que elas eram só meias-irmãs, mas nunca pensava muito nisso.
– Afinal são irmãs, concluía ele. E atirava aquelas reflexões ao ar para dar mais uns chutos na bola que era a sua companhia de sempre.
Raul, menino de raça negra, aparentando uns seis anos de idade, raramente sentia a diferença que a minoria a que pertencia, pelo seu tom de pele, poderia dar a entender.
Vivendo num quarto pertencente à casa dos tios, onde tudo acontecia, não tinha por hábito queixar-se quando todos gritavam em uníssono para se ouvirem mutuamente, apesar do espaço exíguo.
– Nunca fazes comida que preste! – gritava o companheiro da mãe. A resposta da mulher a estas ou outras provocações era sempre a mesma: – Maldita a hora em que vim p’ra ti…O chão devia ter-me engolido.
Mas, Raul sabia que pouco depois estariam abraçados e a fazer coisas feias – como ele achava que eram – pois nesses momentos escondia a cabeça no sujo cobertor que usava para dormir, e tapava os ouvidos para tornar menos sonoros os barulhos e gemidos da progenitora e o resfolgo de cavalo do senhor Luís. Enquanto esses momentos duravam, as irmãs eram quase sempre recambiadas para o primeiro andar onde a tia residia na companhia dos filhos.
– Lá estão eles na pouca vergonha! Gritava a tia lá de cima. Qualquer dia ela fica prenha outra vez e é mais uma boca para comer…Debuxados!…
Também esta reza o menino negro já conhecia de cor. Era sempre repetida como uma lengalenga que nunca se esquece porque atravessou os tempos das muitas gerações da Feteira, terra pequena mas de gente boa.
Na paisagem magnífica da Ilha, a pequena freguesia da Feteira parecia um casario de presépio ladeado de pastos coloridos dos mais variadas tons de verde, onde as vacas brancas malhadas de preto arrastavam o seu dia numa mansidão que deveria ser ensinada aos humanos. Também, dali, se avistava o mar, ora azul e tranquilo como um espelho que descansa a vista e o coração, ora saltando as pedras numa revolta cinzenta de quem não consente nem se compadece com a maldade do mundo.
Era a terra de Raul, filho de pai desconhecido e de mãe que não quis ficar “sozinha no mundo com um filho nos braços”, como tantas e tantas vezes dizia para os outros ouvirem ou – quem sabe? – para desculpar os anseios da juventude que muitas vezes a mantinham acordada pela noite fora em momentos de maior solidão.
Naquele dia, e enquanto o casal se ocupava a encher de móveis e demais objectos a carrinha que o senhor João da loja emprestara, o menino encolhido a um canto com a cabeça entre os joelhos, espreitando de vez em quando o movimento desusado, de olhos admirados e com algum sobressalto no coração, não compreendia o que lhe estava a acontecer. Estava ali, enroscado num sentimento de curiosidade, esperança e desassossego. Ninguém lhe dirigia a palavra. Estavam todos ocupados na tarefa da mudança. E Raul só, cada vez mais só…
As gémeas – como todos chamavam as irmãs – pareciam ter endoidecido. Corriam de um lado para o outro ao ritmo de cada peça que saía do quarto que já há alguns anos lhes servia de moradia.
– Não consegues parar estas raparigas? Estou a ficar tonto – berrava o senhor Luís, os olhos já faiscando como quando os agarrava e lhes batia com a força da mão que ele, Raul, já sonhara tantas vezes fazer desaparecer.
Mas conhecia bem o preço da revolta e habituara-se a silenciar os impulsos, dando, porém, largas ao pensamento que por vezes era negro, bem negro, para o companheiro da mãe.
Logo que o camião do vizinho João pareceu cheio, este aproximou-se da porta e, em tom berrado para se fazer ouvir, disse para dentro: – Vou até à casa nova e descarrego o que aqui está. Também, se formos a ver, já falta pouco. Vocês precisam ainda de comprar muitas coisas, estas aqui estão uma merda – todas a partir-se.
O senhor Luís a resmungar de dentro do quarto: – Como se ele tivesse melhor!…A casa dele está cheia de cacos, cada um mais velho do que o outro. Olha, Maria, havemos de ir ao Presidente da Junta que ele dá coisas aos pobres. Também fica com algumas para si, mas eu se estivesse naquele lugar fazia o mesmo…
Entretanto, as restantes quinquilharias iam sendo enroladas em lençóis e cobertores para serem levadas em braços pelos amigos e familiares e poupar mais um favor ao dono da carrinha.
– Não presta dever favores a ninguém – afirmava o senhor Luís. Entre todos conseguimos transportar o que falta.
E lá seguiram, em passo de procissão, rindo em grandes gargalhadas pelas ruas da freguesia. As irmãs a olhar para trás como se lhes faltasse qualquer coisa que as suas mentes inocentes não conseguiam discernir. Só a mãe – reparava Raul – mantinha os olhos no chão como um acusado a caminho do cativeiro.
Ninguém lhe falara durante todo o tempo em que a mudança fora sendo efectuada. Mas já se habituara a ser ignorado como se não fizesse parte daquela família. Pensava: – A minha tia explicou-me muitas vezes que era mesmo assim. Quando não somos filhos dos dois esquecem-nos.
Olhando ao redor do quarto, que agora parece despido e sombrio, o menino/enteado começa a sentir um aperto no coração. E as horas a passarem, a ficar de noite e ele ali. – Estou com fome, vou pedir comida lá acima, à tia – pensou. Saiu afastando o reposteiro que não deixava entrar as moscas durante o dia, enquanto permitia aos vizinhos que cirandassem pelo quarto como se este fosse uma praça pública onde todos tinham direito a frequentar, e bateu na porta anexa. O rosto amoroso da tia a aparecer e mandá-lo subir: – Vem cá, Raul, queres pão com manteiga? A mão a chegar-se ao ombro do menino, a encaminhá-lo na direcção da cozinha, a doar-lhe o calor do amor…
Mas, embora o afecto que sentia pela tia o fizesse desejar ficar ali, sabia que tinha que descer para esperar a mãe que mais tarde o viria procurar para o levar para a casa nova.
Passaram dias, passaram noites, e a mãe não veio…
Mãe, Mãe?!…Foi o som ouvido durante dias e dias…por aqueles que por ali passavam.
Raul, menino negro, menino branco, filho de todos os divórcios daquela terra, de tanto esperar em vão, tinha marcados no rosto triste dois sulcos traçados pelas lágrimas choradas, sofridas e amargas de quem ao perder a esperança não pode ocultar ao mundo o resultado do abandono a que foi votado naquele dia em que os objectos que compunham a sua casa saíram um a um levando consigo a sua mãe…
Prof.ª Maria da Conceição Brasil 2011/01/26 mcbrasil2005@hotmail.com