Pedro Afonso tinha 13 anos quando o seu pai, José Afonso, já bastante debilitado pela doença incurável que o massacrava, subiu ao palco do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, para um concerto histórico. Essa noite de 29 de janeiro de 1983 ficou na memória de todos os que encheram a grande sala lisboeta, sabendo que participavam numa espécie de despedida. Pedro estava bem habituado a acompanhar o pai em espetáculos (e a sua voz de criança até se pode ouvir na faixa Maravilha, Maravilha, do disco Enquanto Há Força, de 1978), mas essa noite também lhe deixou uma memória única: “Mesmo para um pré-adolescente, percebia-se bem que aquele momento era especial, o ambiente impressionava, entre o eletrizante e o emotivo…”
Quarenta anos depois, foi a essa noite que regressou para homenagear o pai e assinalar os 50 anos do 25 de Abril, olhando para o futuro e apostando na vitalidade e na energia dessas velhas canções. Na verdade, a ideia até partiu de Nuno Saraiva, o editor que, ao lado de Pedro, em representação da família de José Afonso, tem promovido nos últimos cinco anos uma reedição sistemática da discografia do músico nascido em Aveiro em agosto de 1929. “Foi o Nuno que me desafiou para este projeto, tentando marcar a diferença na reinterpretação de músicas do meu pai, partindo desse concerto histórico.”
Pedro pôs uma condição: tudo tinha de começar ali, na cidade da Horta, ilha do Faial, Açores, onde reside há cerca 30 anos. “Sinto que a ilha, que conheço bem, até pela minha experiência aqui como agente cultural, no teatro amador e não só, tem uma mais-valia na aproximação de pessoas, na criação de um ambiente de companheirismo criativo, e provoca uma relação única com a Natureza.”
Rapidamente, a prioridade passou a ser a escolha dos músicos envolvidos nessa aventura atlântica. “A influência africana, mas presente de uma forma moderna e descomplexada, era uma das premissas assumidas, assim como uma aposta em músicos mais jovens, que veem no meu pai, com quem nunca conviveram, uma referência, seguramente musical, e nalguns casos mais do que isso, também cívica.”
O músico faialense Pedro Lucas – que se afirmou, em 2010, com o projeto O Experimentar Na M’Incomoda, revisitando e recriando a música tradicional açoriana, e faz parte da dupla Medeiros/Lucas – acabou por funcionar como curador nessa primeira fase, ajudando a encontrar os músicos certos para estes novos Cantares do Andarilho, a que chama “um coletivo, uma constelação”. Daí saiu a escolha de um diretor musical: o moçambicano Tiago Correia-Paulo, que tem trabalhado em diversas bandas sonoras e gosta de explorar um lado experimental como compositor e multi-instrumentista.
Certo é que, em abril de 2024, exatamente meio século depois da revolução dos cravos, um grupo de músicos que nunca antes tinha trabalhado em conjunto aterrou na ilha do Faial para uma residência artística de cerca de duas semanas que terminaria num concerto para apresentar, no Teatro Faialense, o trabalho realizado.
Além de Tiago e de Pedro Lucas (Pedro Afonso era o anfitrião, sempre presente, disponível para debater ideias e ajudar, mas sem intervenção direta na criação musical), os artistas que compõem o coletivo Wanderer Songs/Cantares do Andarilho são os Lavoisier (Roberto Afonso e Patrícia Relvas), Selma Uamusse, Augusto Macedo, Diogo Sousa, Nástio Mosquito e Vic Pereiró (estes dois últimos contribuindo sobretudo para o lado visual do projeto, que inclui projeções durante os concertos), o asturiano Nacho Vegas funciona como uma espécie de convidado especial (canta, de forma inconfundível, a clássica Canção de Embalar) e no futuro poderá haver outros nomes a associarem-se, com esse estatuto, ao grupo.
Desassossego
A ideia inicial era fazer versões, por ordem, de todas as canções do alinhamento do concerto histórico de 1983. Mas, com o avançar do processo, foram feitas outras opções. “Conversámos bastante sobre o assunto e houve músicas que achámos que fazia sentido reinterpretar nos dias de hoje, por exemplo Os Fantoches de Kissinger, que nem é das músicas mais conhecidas do meu pai, mas sentimos que, falando do imperialismo dos EUA, tem bastante atualidade”, recorda Pedro Afonso, lembrando, ainda, que rapidamente concluíram que tocar todas as canções do concerto de 1983 iria resultar num espetáculo demasiado longo.
Nos dias atarefados da residência artística (“Foram muito intensos”, recorda Pedro Lucas, “passámos muito tempo juntos naquele teatro, muitas vezes nem saíamos para as refeições”), Tiago Correia-Paulo assumiu a tarefa que lhe tinha sido atribuída: dirigir aquela espécie de nova orquestra, em nome das canções de José Afonso. Curiosamente, entre todos, o músico moçambicano seria o que menos teve contacto com a obra do autor de Grândola, Vila Morena ao longo da vida. “Cresci a saber quem era o Zeca Afonso e aquilo que ele representava, mas tenho de confessar que não estava muito a par da sua discografia, salvo alguns temas, como a Grândola, Venham Mais Cinco e outros dos clássicos”, conta-nos, por email, a partir de Maputo, a sua cidade, que vive dias turbulentos desde as eleições de outubro.
“Quando este processo começou, passei semanas e semanas trancado no meu estúdio a consumir compulsivamente o cancioneiro do Zeca. Passado algum tempo, comecei a entender algo que transcendia a música e que penso que se relacionava mais com a pessoa, o seu estilo de composição e, talvez, o sítio especial a partir do qual ele escrevia. Quando comecei a relacionar-me com esse sítio, encontrei o lugar criativo para começar a reinterpretar algumas das músicas. Quis adicionar-lhes uma espécie de modernidade, afrocentrismo e experimentação – talvez até um pouco de audácia, arriscar um pouco. Ao longo deste processo, perguntei-me muitas vezes o que estaria a fazer o Zeca no contexto musical atual, e o que me surgia sempre mais naturalmente era imaginá-lo rodeado de jovens e novas sonoridades, a guiar-nos para fazer algo semelhante ao que estamos a fazer agora.”
Essa intuição bate certo com várias declarações do próprio José Afonso, sobretudo nos últimos anos de vida. “O que é preciso é criar desassossego, quando começamos a procurar álibis para justificar o nosso conformismo, então está tudo lixado!”, disse em entrevista ao jornalista Viriato Teles. Pela mesma altura, a uma publicação juvenil afirmou que preferia atuar para “a malta” de 15 ou 16 anos do que para o seu público habitual, com quem tinha “afinidades de ordem ideológica, política, de visões de vida”.
Musicalmente, Tiago valorizou bastante a africanidade que há na música de José Afonso (que viveu vários anos em Moçambique, na infância e na idade adulta): “Foi a partir dessa ligação que o Zeca teve com Moçambique que nasceu a arquitetura e base deste projeto para mim. Esse género de proximidade dele com o universo que mais conheço, e reconheço, deu-me muitas pistas sobre o que fazer e como fazer. Pesquisei muito sobre o período em que o Zeca esteve em Moçambique; imaginá-lo aqui, durante um dia de calor e humidade, sentado numa varanda com uma guitarra acústica ao colo à procura de palavras que rimassem, foi um catalisador para o meu espaço e o meu processo criativo. Por exemplo, no Venham Mais Cinco e n’O Que Faz Falta quis trazer um pouco da marrabenta moçambicana, um dos nossos géneros mais icónicos e celebrados; lembro-me ainda de que quando o talentoso Augusto Macedo, nosso baixista e teclista, começou a tocar m’bira, um instrumento do Sul de África e, consequentemente, de Moçambique, na tentativa de adicionar algo à A Morte Saiu à Rua, houve algo que imediatamente despertou em mim.”
Mas Zeca também o fez voar e estilhaçar fronteiras: “Gosto de misturar mundos, e acho sempre interessante convencer os músicos com quem trabalho a fazerem algo semelhante. Por exemplo, sabia que queria interpretar os Vampiros como se fosse um cover feito por Fela Kuti – há algo de muito semelhante nas letras de ambos, na própria forma de sátira política”, diz Tiago. “Já no Redondo Vocábulo aquilo que me surgiu foi misturar algo bem ocidental e moderno com algo vintage e africano, um género de composição com polirritmos africanos e guitarras à la White Stripes.”
No fundo, como diz Pedro Lucas, “o Zeca tornou-se um símbolo e uma referência cultural; e as referências, precisamente por serem abrangentes e transversais, têm essa capacidade de ser apropriadas e personalizadas individualmente, têm essa maleabilidade”.
O resultado destas leituras e apropriações, quase 38 anos depois da morte do músico, pode ser ouvido nos concertos marcados para esta semana (Casa da Música, no Porto, nesta quarta, 22, e Tivoli, em Lisboa, na quinta, 23), assim como no disco gravado ao vivo na Horta em abril do ano passado e que ficará disponível no próximo dia 24.
A ideia deste coletivo é continuar, e “animar a malta” em novas gravações e concertos nos palcos de todo o mundo.
Wanderer Songs/Cantares do Andarilho > Casa da Música, Porto > 22 jan, qua 21h30 > €20 > Tivoli BBVA, Lisboa > 23 jan, qui 21h > €10 a €20