Numa época tão polarizada como a que vivemos, a chamada 9ª arte pode ser um remédio democrático capaz de aliviar as tensões sociais? A questão daria pano para muitas pranchas de banda desenhada, mas Cristina Valente, diretora da Amadora BD, responde à VISÃO com a síntese de um bom cartoon: “Este é um festival inclusivo, que é de todos para todos.”
De regresso ao Parque da Liberdade, com extensões à Galeria Municipal Artur Bual, Casa Roque Gameiro, e Bedeteca da Amadora, a 35ª edição do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora 2024 assenta papéis até 27 de outubro. O tema deste ano? Humanidade. E os ‘bonecos’, diga-se, sabem tudo sobre este assunto.
Contemple-se, por exemplo, um dos mais famosos desenhos do argentino Quino (1932-2020) dedicados à menina contestatária de franja e dedo em riste: Mafalda, sentada numa cadeira e de semblante preocupado, tira a temperatura ao planeta Terra, doente e cheio de ligaduras… E Mafalda, uma inconformista de 60 anos, a exposição comissariada por Maria José Pereira, é um dos destaques da programação deste ano e vai falar a várias gerações de leitores que conhecem as manias (detesta sopa, gosta dos Beatles, faz perguntas incómodas aos pais, tem uma tartaruga chamada Burocracia…) e idealismos (faz discursos aos povos do mundo, acha que “política” é um palavrão, é amiga de uma pequena Liberdade…) desta personagem, publicada pela primeira vez no semanário argentino Primera Plana, a 29 de setembro de 1964, antes de ganhar fama mundial.
Missão social, questões fracturantes, inclusão, liberdade, colonialismo, racismo estrutural, emigração, memória, acessibilidade, são questões que atravessam as 15 exposições patentes neste Amadora BD – e esta atenção ao mundo, sublinha Catarina Valente, não é uma novidade no percurso longo do festival: “A programação do Amadora BD esteve sempre consciente da missão social que tem junto dos seus públicos muito diversificados. É também, recorde-se, uma iniciativa organizada por uma câmara municipal, havendo uma constante preocupação com a democratização da cultura, e havendo uma relação direta com a comunidade. Nomeadamente, o festival promove concursos de banda desenhada abertos aos vários públicos. E promove os prémios mais antigos da banda desenhada nacional [os vencedores desta edição serão conhecidos já no próximo domingo]”.
A diretora do Amadora BD destaca também a atenção à inclusividade em 2024, havendo um novo plano de acessibilidade aos espaços no festival, comunicação mais acessível (nomeadamente através das folhas de sala multiformato), ou a apresentação da chamada “primeira exposição sensorial inclusiva”, dedicada ao superherói Daredevil, que explora os sentidos da audição e do tato. O personagem cego, criado há 60 anos pelos norte-americanos Alex Maleev e Joe Rubinstein – desenhadores que também marcarão presença na Amadora – e conhecido como Demolidor pelos leitores portugueses, advogado que se transforma em justiceiro nocturno nas ruas de Hell’s Kitchen, em Nova Iorque, é, sublinha, o único personagem com uma deficiência no universo autoral da Marvel.
Agenda cheia
Mas a 35 ª edição do Amadora BD vai mais além: os 50 anos do 25 de Abril não foram esquecidos, e são evocados, especialmente nas exposições 25 Mulheres de Raquel Costa (Bedeteca da Amadora), que ficciona histórias femininas no Portugal pós-revolucionário dos anos 1970; Assim Vai o Mundo, Cristina!, da ilustradora Cristina Sampaio que vai buscar a influência de Mafalda para o título de cartoons que esmiuçam o mundo; ou O Plural de Abril em Nuno Saraiva (Galeria Municipal Artur Bual), uma mostra de ilustrações editoriais, posters, cartazes, cartoons e bandas desenhadas de um autor militante e sempre atento à política nacional.
Sintonizado com as preocupações atuais, o brasileiro Marcelo D’Salete (nascido em 1979) apresenta em Quilombo, herança e resistências, uma série de trabalhos em que explora os temas do racismo, colonialismo e exclusão, patentes em livros seus como De Noite Luz (2008) ou Mukanda Tiodora (2023) que tem edição portuguesa anunciada para breve.
Por sua vez, o franco-canadiano Mikael marca presença no Amadora BD com Trilogia de Nova Iorque, uma panorâmica sobre a vida dos imigrantes – perspetiva acutilante se se pensar nas eleições americanas de novembro. Outra emigração, a portuguesa em terras de França, explora-se na exposição Edgar de Mathieu Sapin, narrativa da epopeia anónima do sogro do desenhador.
Também o francês Christian Lax faz uma digressão pelas sociedades marcadas pelo obscurantismo, traçando um retrato duro do século entre os alpes, os EUA e o Afeganistão, na exposição Universidade das Cabras.
Fértil em datas redondas, o Amadora BD tem este ano a exposição 25 anos de Naruto: O Caminho do Ninja, dedicada à criação de Masashi Kishimoto, lançada em formato manga em 1999 e adaptada a anime em 2002 – um fenómeno de popularidade.
Entre outras exposição, ainda a destacar duas descobertas na 35 ª edição do festival: Elevada Nota Artística – 80 anos de cartoons n’A Bola, exposição que desencanta tiras humorísticas, cartoons e bandas desenhadas originais dos anos 1950 a 1980, publicadas no jornal e agora apresentadas pela primeira vez ao grande público; ou (Re)conhecer Guida Ottolini (1915-1992): Uma ilustradora da ‘tribo dos pincéis’, comissariada por Sandra Leandro, que revela obra da artista, terceira geração da família Roque Gameiro, que fez banda desenhada e foi ilustradora em publicações como Eva, Portugal Feminino, Tic-Tac….
Das paredes para as mesas: nesta 35ª edição do Amadora BD estarão presentes mais de uma dezena de autores de banda desenhada, muitos destes a lançarem as edições portuguesas das obras. É o caso da holandesa Aimée de Jongh, que apresenta a sua adaptação para BD do clássico O Deus das Moscas, de Wiliam Goulding; da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim que traz o livro Grass [Erva]; e de Mathieu Sapin, Marcelo D’Salete, Christian Lax, Mikael, Alex Maleey e Joe Rubinstein. Desenhos e vozes do mundo, sobre o mundo.
35º Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora – Amadora BD > Parque da Liberdade (Antigo Ski Skate Amadora Park), Galeria Municipal Artur Bual, Bedeteca da Amadora e Casa Roque Gameiro > até 27 out, seg-qui 10h-20h, sex, sáb-dom 10h-21h > €6, €2 (12-18 anos, estudantes e maiores de 65 anos), grátis até 12 anos