1. Os Demónios do Meu Avô, de Nuno Beato
A animação portuguesa está em grande forma e recomenda-se. O sinal vinha de há muito, com prémios variados, para realizadores como Regina Pessoa ou Pedro Serrazina. Mas 2023 superou todas as expectativas. Primeiro, porque, pela primeira vez na sua história, Portugal teve um filme nomeado para os Oscars; e o filme em causa, Ice Merchants, é uma curta de animação feita por um jovem realizador, João Gonzalez. Depois, porque, quase em simultâneo, estreiam-se duas longas portuguesas que percorreram importantes festivais de cinema e receberam prémios. Há um mês estreara Noyola, de José Miguel Ribeiro; agora é a vez de Os Demónios do Meu Avô, de Nuno Beato.
Este ‘de’ é redutor, porque se as longas de ficção são sempre feitas por muita gente, as de animação são por muito mais. Os Demónios do Meu Avô contou com três equipas de animação, em Portugal, Espanha e França, e o filme foi trabalhado durante cerca de sete anos.
A técnica principal é o stop motion, utilizando marionetas, um trabalho de grande paciência, persistência e precisão. O resultado é deslumbrante e belo.
O filme, com argumento de Possidónio Cachapa, a partir de uma ideia do próprio Nuno Beato, conta a história comum de uma mulher que, cansada do stresse da grande cidade, decide migrar para o campo, em busca das memórias do seu falecido avô. Numa aldeia, algures nas terras de Miranda, vive entre o assombramento e o mistério, num misto entre o neorruralismo e a tradição.
Nesta história bem contada, a caminho do fantástico, Nuno Beato inspirou-se nos bonecos de barro da artesã Rosa Ramalho e conta com a música dos Gaiteiros de Lisboa, que dão ao filme um cunho muito português.
Os Demónios do Meu Avô, filme de animação para todas as idades, que se estreou no MoteLX e passou por Annecy (o mais importante festival de cinema animado), entra diretamente para a história do cinema português. É um pecado não o ver no cinema. De Nuno Beato, com Victoria Guerra, Joana Brandão, Nuno Lopes, António Durães > 83 min
2. Cidade Rabat, de Susana Nobre
A obra mais ficcional da filmografia de Susana Nobre está repleta de referências pessoais, num estilo que em literatura se designaria autoficção. Não obstante, é claramente uma obra ficcional, em que a realizadora trabalha pela primeira vez com uma atriz profissional, com um guião estruturado.
Cidade Rabat parte de três acontecimentos-chave: o filme que Susana queria fazer sobre o prédio da sua infância, descrevendo os vizinhos, a morte da sua mãe (inclusive encena o funeral no Garvão) e a sua experiência de trabalho comunitário no Sporting Clube da Amadora.
Tudo isto conduz à criação de uma personagem feminina do estilo anti-herói, com um pouco de clown, figura do burlesco, ao estilo de Elia Sulleiman, que se espanta com aquilo que lhe vai acontecendo, com uma aparente tranquilidade e apatia.
Cidade Rabat, um dos melhores filmes de Susana Nobre, estreou-se no Festival de Berlim, passou pelo IndieLisboa e agora chega finalmente às salas portuguesas. De Susana Nobre, com Raquel Castro, Paula Bárcia, Paula Só, Sara de Castro > 101 min
3. Asteroid City, de Wes Anderson
Asteroid City só não é um cometa cinematográfico que aterrou no deserto norte-americano porque Wes Anderson já nos habituou tanto às suas loucuras que o filme encaixa plenamente, sem demasiada surpresa, no seu universo criativo.
Facilmente se encontram pontes entre este inusitado e surrealista Asteroid City e o anterior Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun. E se um dos mais conseguidos filmes do realizador de culto norte-americano é uma animação (O Fantástico Sr. Raposo), os seus filmes em imagem real cada vez se assemelham mais a animações, ou melhor, bandas desenhadas.
Este irresistível Asteroid City parece situar-se algures num ponto de encontro entre Tim Burton e Aki Kaurismäki, plantando-se num deserto norte-americano redescoberto por Wim Wenders (Paris, Texas) e uma galeria de personagens entre Lucky Luke e o cinema de género norte-americano dos anos 70. Mas sobretudo Wes Anderson, com uma criatividade fora das balizas convencionais, apura sempre a sua própria linguagem, e é isso que o torna um dos mais fascinantes realizadores contemporâneos. Newsletter A subscrição foi submetida com sucesso!
Asteroid City, uma fantasia passada nos anos 50, cruza três camadas de (sur)realidade. Primeiro, o guião de uma peça de teatro da época; depois, um encontro nacional de jovens crânios; e, finalmente, a desconstrução de tudo isto com os bastidores da própria peça.
A ação passa-se no meio do deserto norte-americano, num não lugar, parecido com tantos outros, onde há uma bomba de gasolina, uma oficina, um diner e um motel. As personagens são, por definição, caricaturas autoconscientes, assim como o próprio lugar é caricatural. Há, por exemplo, um carro da polícia que passa, para cá e para lá, atrás de bandidos e visitas à cratera provocada por um asteroide que ali caiu há três mil anos e dá o nome ao lugarejo.
Este não lugar, por coincidências cósmicas e alienígenas, torna-se de repente o centro do universo, num desenvolvimento dramático, em que a criatividade joga sempre a favor de um humor fino e surreal, sobre uma mise-en-scène primorosa, teatral, geométrica e perfecionista.
Para tudo isto contribui um elenco fora de série, com interpretações marcantes de Jason Schwartzman, Tom Hanks e Scarlett Johansson. E que se dá ao luxo de entregar papéis secundários a Tilda Swinton, Matt Dillon, Edward Norton, Adam Brody, Willem Dafoe, Steve Carell ou Margot Robbie. De Wes Anderson, com Jason Schwartzman, Tom Hanks e Scarlett Johansson > 104 min