A banda filarmónica soa ao fundo. De repente, silêncio. Um rufar de tambores, um compasso de espera e, por fim, as primeiras notas do Hino de Nossa Senhora da Conceição Rainha de Portugal . Quem já assistiu a uma das dezenas de procissões católicas que, todos os verões, enchem as aldeias de Portugal, poderia pensar estar a caminhar em direção a uma.
Mas, na galeria do espaço cultural Lx Lapa, onde outrora os padres jesuítas mantinham a biblioteca da revista Brotéria, são as fotografias de Ana Paganini que esperam quem se aproxima do som. Ao longo de duas salas, a exposição Jesus’ Blood Never Failed Me Yet (com curadoria de Bruno Pelletier Sequeira) representa uma verdadeira crónica de costumes, cristalizada em fotografias que retratam momentos intimistas de seis procissões realizadas nos verões de 2019 e 2022, no Norte e Centro do País.
Inicialmente foi o aspeto performativo e teatral das procissões que me atraiu. Mas por ter vivido de perto tantas delas, percebi que era algo muito mais sério do que isso
ana paganini, fotógrafa
O projeto, motivado pelo fascínio da fotógrafa em relação ao diálogo entre o sagrado e o profano, é um altar de encontros. Nas 49 obras expostas, a romaria convive com a religião, os idosos com as crianças, a luz com a sombra, a festa com a oração e o presente com o passado.
“Inicialmente foi o aspeto performativo e teatral das procissões que me atraiu. Mas por ter vivido de perto tantas delas, percebi que era algo muito mais sério do que isso”, explica Ana Paganini.
Habituada a fotografar bastidores de concertos e de filmagens cinematográficas, a artista mantém um registo quase voyerista, de quem procura o momento cândido, real, em que um crente se entrega à Fé, esquecendo-se genuinamente de quem é para encarnar o santo que lhe coube representar.
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Este momento de entrega é, nas palavras da fotógrafa, “algo muito forte”, que lhe permitiu transformar pessoas em autênticas obras de arte sacra. “Os Santos foram imortalizados em esculturas, que voltaram a ganhar vida com a interpretação destas pessoas, as quais acabaram por se transformar de novo em pedra, quando as cristalizei nas minhas fotografias”, explica.
É, como sublinha o curador Bruno Pelletier Sequeira, “uma abordagem comprometida com o assunto, de uma forma equilibrada, respeitando a distância que o tema precisa”
As imagens desconstroem a massa monumental que é uma procissão religiosa, mostrando pequenos pormenores impercetíveis a quem olha para o todo sem prestar atenção às partes.
Pés de centenas de crentes, assentes no chão sob o peso de andores de mais de 20 metros de altura, o sorriso tímido de uma criança compenetrada em encarnar um anjo, os olhares expectantes de 50 raparigas vestidas de Nossa Senhora, o sagrado e o profano que se cruzam nos andores decorados com dinheiro de oferendas, a concentração da adolescente que caminha vestida de Nossa Senhora de Fátima ou a interpretação sentida que outras duas fazem de Nossa Senhora da Pena.
E depois há a luz. Atravessando o mar que banha os pés dos fiéis da Senhora do Mar, na Praia das Maçãs, surgindo por detrás do andor de 22 metros da Romaria da Senhora da Pena, em Vila Real, ou tocando, quase num gesto de ironia, a coroa de Santa Bárbara, a protetora das tempestades e trovões.
A artista explica que, acima de tudo, “a ideia foi honrar, com muita dignidade, uma memória, uma tradição e uma história muito ligadas à nossa terra”. E, de facto, em Jesus Blood Never Failed me Yet, as fotografias de Paganini trazem o céu à Terra.
LX Lapa > R. Maestro António Taborda, 14, Lisboa > T. 21 192 9113 > seg-sex 10h-20h, sáb-dom 11h-19h > grátis