A réplica da máscara funerária de Tutankhamon, reluzente e de pequena dimensão, contrasta com a enorme tapeçaria do século XVIII da fábrica Gobelins, que ilustra um episódio conhecido do confronto entre Moisés e o rei Faraó. Além da escala, também a variedade de peças surpreende logo à entrada de Faraós Superstars, patente no Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Esta não é uma exposição clássica sobre o Antigo Egito, não se espere por isso múmias nem sarcófagos, a não ser que estejam representados em alguma fotografia ou vídeo.
“Iniciamos a narrativa com peças que o visitante não espera ver numa exposição sobre arte egípcia, normalmente monumental [era com grandes construções que os faraós marcavam a sua grandeza] e feita de achados arqueológicos. Aqui, estamos à escala humana, esses monumentos ou são fragmentos ou estão representados noutros suportes”, diz João Carvalho Dias, cocurador da exposição e diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian, aonde a mostra chega agora, depois de ter estado no MuCEM – Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo, em Marselha.
Concretizada a partir de uma ideia do egiptólogo e curador Fréderic Mougenot, Faraós Superstars propõe uma reflexão, no mínimo curiosa, sobre o papel do faraó. Se o Egito foi governado por 340 destas figuras, porque só algumas, como Kéops, Nefertiti, Cleópatra, Ramsés ou Tutankhamon, são lembradas? E como se explica que, passados milhares de anos, continuem a ser reconhecidas e populares? Estas são algumas questões a que se pretende dar resposta.
Nesta viagem ao passado, dividida em três núcleos que se desdobram, aborda-se os reinados memoráveis, para explicar como se era um bom faraó e se perpetuava no tempo, mas também os reis malditos – na altura, apagava-se a sua memória destruindo imagens ou apagando os seus nomes.
Mais à frente, recorda-se a história e as lendas à volta de figuras como Nectanebo, Cleópatra ou Sesóstris, a decifração dos hieróglifos e a revelação ao mundo de Nefertiti ou Tutankhamon.
Já no final, a apropriação destas figuras na cultura pop e na modernização do Egito faz-nos viver o nosso tempo. “A partir dos anos 20, os egípcios começaram a adotar modelos e objetos europeus, mas montavam-nos no seu país e davam-lhes nomes de faraós”, explica João Carvalho Dias. Na exposição pode ver-se uma máquina Singer batizada de Nefertiti e acompanhada com a imagem da rainha. A apropriação dos ícones nacionais replica-se em tudo, das marcas de cigarros ao leite, a um carro com motor Volkswagen chamado Ramsés.
Egitomania
Tudo isto se conta através de 250 peças, muito diferentes entre si, cedidas por vários museus europeus como o British Museum, o Museu do Louvre e o Museu D’Orsay. Há antiguidades egípcias, como o punho de um colosso ou um fragmento da pirâmide de Gizé, possivelmente do topo devido à pequena dimensão, pinturas clássicas e documentos, como o álbum de viagem da rainha D. Amélia ao Egito ou o diário de viagem ao Egito, à Palestina e à Síria de Calouste Gulbenkian. E ainda iluminuras medievais, filmes, fotografias, bens de consumo e peças contemporâneas, que demonstram como só alguns faraós se tornaram ícones pop à escala mundial.
Numa das vitrinas, já na parte final da exposição, encontra-se a capa da Vogue Arábia com a cantora Rihanna vestida de Nefertiti, a sweatshirt da coleção Homecoming de Beyoncé, com referências à mesma rainha, a imagem da peça de teatro António e Cleópatra, de Tiago Rodrigues, ou a cadeira Ramsés do arquiteto Siza Vieira. Em comum, todas estas peças se apropriam da imagem, e do que ela representa, desses reis e rainhas egípcios, porque há muito que a egitomania tomou conta da vida quotidiana, sem se dar por isso.
O fascínio e a curiosidade por esta cultura têm décadas. Aliás, há duas datas importantes que se assinalam este ano e têm referência na exposição: os 100 anos da descoberta do túmulo de Tutankhamon, no Vale dos Reis, pelo egiptólogo britânico Howard Carter, e os 200 anos da decifração dos hieróglifos, por Jean-François Champollion.
Se a primeira marca a forma como, no Egito, se trabalham as escavações e as descobertas – deixa-se de ter direito aos achados, transformando a identidade cultural no país –, a segunda deu uma volta ao estudo da egiptologia, que deixa de ser um lugar mágico só para alguns eleitos (como Carter e Lord Carnarvon, financiador da expedição que revelou o túmulo de Tutankhamon), para se tornar uma ciência da História.
Nada disto se conta sem referir Calouste Gulbenkian, que começa a comprar antiguidades egípcias em 1907 e até 1942, “o suficiente para ter uma das coleções mais importantes em mãos de particulares”, sublinha João Carvalho Dias. A partir de 1922, um dos seus conselheiros é precisamente Howard Carter. A exposição conta com cinco peças do núcleo de arte egípcia da Gulbenkian. “São objetos muito relevantes, mas pequenos, podiam ter-se em casa”, diz o cocurador, reforçando novamente essa ideia de que a arte egípcia é colossal, mas também miniatural.
Faraós Superstars > Museu Calouste Gulbenkian > Av. de Berna, 45A, Lisboa > T. 21 782 3000 > até 6 mar > sáb-seg, qua-qui 10h-18h, sex 10h- 21h > €5
Tesouros
Em Faraós Superstars, expõem-se cerca de 250 peças provenientes de museus europeus, como o Museu do Louvre, o Museu D’Orsay ou o British Museum. João Carvalho Dias, cocurador da exposição e director-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian, escolheu quatro obras.
Cabeça de Senuseret III
Durante o reinado de Senuseret III, o Egito atingiu um notável apogeu. O material em que a peça (c. 1860 a.C.) foi executada é uma pedra rara proveniente da Etiópia. Muito apreciada por Calouste Gulbenkian, foi adquirida no leilão da coleção do reverendo William MacGregor, em Londres, em 1922, e integra a coleção do museu lisboeta.
Caixa de figurinhas funerárias
Decorada com imagens de Amen-Hotep I e Ahmés-Nefertari divinizados, esta caixa de madeira (c. 1069-735 a.C.) veio do Museu Egípcio de Turim. A presença destes soberanos na decoração de mobiliário funerário mais de 400 anos após os seus reinados comprova o seu papel enquanto protetores dos defuntos.
Motorizada Kéops
Kéops, construtor da Grande Pirâmide, é convocado nesta motorizada de 1926, sugerindo a ideia de solidez e eternidade. A escolha do nome é, aliás, justificada nos anúncios publicitários da empresa Guinard: “Por ser indicativo de uma duração infinita.” Pertencente a uma coleção particular, a peça está em depósito no Musée de la Moto, em Marselha, e viajou até Lisboa.
Esfinge de Nectanebo
Quando assume o poder (380-361 a.C.), Nectanebo faz-se coroar sob o nome de Kheperkaré. O mesmo nome de reinado tinha sido adotado, mais de 1 500 anos antes, por Senuseret I. Com esta escolha, o novo soberano, representado na exposição por uma esfinge de arenito pintado, pretende prestar homenagem ao seu predecessor e apresentar-se como o seu digno herdeiro. A peça pertence ao Departamento de Antiguidades Egípcias do Museu do Louvre.