Há, pelo menos, duas maneiras de ver a exposição que neste verão ocupa o Museu Guggenheim, em Bilbau (até 18 de setembro). Uma: ficar surpreendido com a quantidade de carros que estão dentro do edifício e apreciá-los atentamente, um a um, virando-lhes ocasionalmente as costas para ver as muitas obras de arte nas paredes. Outra: perceber que os automóveis são só uma parte de uma ideia mais ampla que quer fazer-nos pensar no passado, no presente e no futuro da mobilidade. Claro que o ideal é, com tempo, juntar essas duas perspetivas.
Não é a primeira vez que o Guggenheim acolhe uma exposição dedicada a máquinas de transporte que nos fazem sonhar. Em 1999 inaugurou-se ali A Arte da Motocicleta que percorria a história dos veículos motorizados de duas rodas. Agora, em Motion – Autos, Art, Architecture, não há como não ficar surpreendido com a quantidade de carros que ali vemos e que parecem ofuscar tudo o resto. Há um poder hipnotizante naquelas máquinas, muitas delas verdadeiros prodígios da tecnologia e/ou do design, e é também desse fascínio que os automóveis exercem sobre nós, da sua capacidade de provocarem emoções, que esta exposição trata.
Ao todo, estão no museu da cidade basca 38 automóveis, alguns deles muito raros (protótipos que nunca passaram à fase de produção), outros muito populares, verdadeiros clássicos. A organização é mais temática do que cronológica, em seis núcleos: Começos, Esculturas, Popularização, Desporto, Visionários e “Americana” (sim, os EUA, país que tem uma ligação como nenhum outro à indústria automóvel, têm uma secção só para si).
É curioso pensar, logo na primeira sala, que a emergência dos automóveis, no fim do século XIX, foi vista como um importante avanço, mesmo a nível ambiental, uma espécie de libertação. As grandes cidades já lidavam dificilmente com as consequências dos transportes a tração animal: maus cheiros, doenças, logística cada vez mais difícil… Mais de um século depois, os carros com motor a combustão são vistos como uma das grandes ameaças ambientais e já é óbvio que o caminho se fará numa procura de alternativas e no desinvestimento, que já começou, na energia proveniente de combustíveis fósseis. Na sessão de apresentação da exposição à imprensa, o arquiteto Norman Foster, do alto dos seus 87 anos e do seu prestígio, falou mesmo em “réquiem pela época da combustão” – como se o templo do Guggenheim (com a sua arquitetura futurista assinada por Frank Gehry) albergasse, agora, essa cerimónia.

A ideia de ter energias alternativas para a mobilidade é mais antiga do que podemos, hoje, pensar. A prová-lo está, nessa primeira sala, um interessante veículo datado de 1900: o Elektrischer Phaeton, Model 27, System Lohner-Porsche. A revolucionária ideia de ter um motor elétrico autónomo em cada roda não vingou nessa época, mas seria recuperada, quase sete décadas depois, na tecnologia do veículo pensado para a exploração do solo lunar…
Arte e indústria automóvel estão em permanente comunicação ao longo das salas de Motion – Autos, Art, Architecture. Não é só o modo como, inevitavelmente, os carros foram entrando, como protagonistas do mundo, na arte contemporânea (a evolução da fotografia e dos automóveis, por exemplo, fez-se muitas vezes em grande proximidade, como se pode ver nas imagens, cheias de movimento, de Jacques Henri Lartigue). A própria arte, o air du temps, influenciou, subtil ou diretamente, a evolução do mundo automóvel. Isso é bem nítido quando olhamos, por exemplo, para as esculturas de Brancusi em comunicação com a busca pela forma aerodinâmica perfeita em carros como o Tatra T87. Em alguns casos, podemos dizer que os próprios veículos são, por si, uma obra de arte: na sala “Esculturas” estão um voluptuoso Delahaye Type 165 Cabriolet vermelho, de 1938, ou os impressionantes Bugatti T57SC Atlantic (de 1936) e Bentley R-Type Continental (de 1953).

Mas nem só de automóveis raros, exóticos e pouco conhecidos se faz esta exposição. Perante os exemplares de um Fiat 500, um Citroën 2CV, um Volkswagen Carocha, um Renault 4 ou um Mini, percebemos melhor a revolução que os carros impuseram nas nossas vidas nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Em termos de carros de sonho, a placa central da sala dedicada aos desportivos (Sporting) é uma espécie de jackpot, exibindo um Porsche 356, um Mercedes-Benz 300 SL, um Ferrari 250 GTO, um Jaguar E-Type e um Aston Martin DB5, para sempre associado a Bond, James Bond.

Mas não nos esqueçamos de que esta exposição é, também, o tal “réquiem” – a que não falta sequer uma banda sonora, uma espécie de sinfonia de barulhos de motores (incluindo os das ensurdecedoras máquinas de Fórmula 1) pensada pelo músico dos Pink Floyd Nick Mason. Tudo isto é passado. O CEO da Volkswagen (patrocinadora da exposição, ao lado da Iberdrola) não tem dúvidas: “Por volta de 2030, o campo da mobilidade terá experimentado a transformação mais profunda desde que, no início do século XX, se deu a transição das carruagens puxadas por cavalos para os carros.” Norman Foster faz questão de sublinhar que acredita que, qualquer que seja a tecnologia envolvida nos automóveis do futuro, nunca deverá faltar a dimensão do prazer, da emoção e da estética na relação dos seres humanos com os seus carros.


É, precisamente, com uma grande janela aberta para o futuro que termina a exposição Motion – Autos, Art, Architecture. Foi pedido a 16 escolas de design e arquitetura de todo o mundo que pensassem como será o setor da mobilidade no final do século XXI. Se muitos dos grupos de estudantes e professores imaginaram carros extraordinariamente futuristas, aerodinâmicos e autónomos, outros apresentaram projetos em que, simplesmente, não se vislumbram automóveis, mas sim novos conceitos de organização urbana. A sustentabilidade é um denominador comum a todas as propostas. A mais louca talvez seja a da escola suíça Gramazio Kohler Research, que nos apresenta um modelo de cidades, para 30 mil habitantes, verticais e circulares, totalmente construídas usando drones e que dispensariam a própria ideia de automóvel.
O fim do século é um horizonte longínquo, e ainda mais distante parece neste momento em que a humanidade enfrenta tantos desafios e pensa, como nunca antes, na sua própria sobrevivência. Mas se há algo que exposições como esta, que nos dão uma perspetiva cronológica, nos ensinam é que o futuro é, sobretudo, imprevisível. Na indústria automóvel, como em muitas outras disciplinas, sempre que tentamos prever o futuro a médio e a longo prazo, criamos visões que tendem a não envelhecer lá muito bem e dizem sempre mais das nossas preocupações presentes do que do verdadeiro futuro. Afinal, ainda continuamos à espera daqueles carros voadores com que, década após década, os mais visionários sonham desde o século XIX…