Christiane Jatahy (1968, Rio de Janeiro) fala com a delicadeza oposta às suas palavras, como se uma força magnética a puxasse sempre para o significado das coisas. Estamos precisamente a meio da programação da bienal Artista na Cidade 2018 e ainda há muito para ver do palco sem fronteiras que é a cabeça da encenadora, realizadora e artista brasileira, uma das mais fascinantes e completas da atualidade. A primeira brasileira a ter o nome na emblemática Sala Richelieu, da Comédie-Française, já fez residências artísticas em Paris e Bruxelas, estudou jornalismo e debruçou-se na filosofia.
Agora, depois da apresentação no Teatro Nacional Dona Maria II da trilogia a partir de textos clássicos de Strindberg, Tchékhov e Shakespeare (Júlia, E se Elas Fosse para Moscou, A Floresta que Anda) segue-se Ítaca- A Nossa Odisseia I, até segunda, 11, no palco do São Luiz, em Lisboa. O regresso da programação acontece entre setembro e novembro, da Cinemateca ao Cinema São Jorge e ao São Luiz, para celebrar a proximidade de Jatahy com o cinema e, mais uma vez, com o público – é a ele, afinal, que as suas palavras querem chegar.
Focou muito a programação da Artista na Cidade 2018 na quebra de fronteiras e Ítaca, que apresentou em Paris e chega agora ao São Luiz, é a primeira parte de um díptico que tem precisamente a ver com isso, com a ideia de chegar a casa. Porquê revisitar e repensar este texto?
A peça faz parte do festival Alkantara, que abri o ano passado, e este foi um convite muito interessante para voltar, uma escolha que se somou ao programa do Artista na Cidade. Foi primeiro pensado para o teatro Ódeon, em Paris, e agora vai ser muito interessante apresentar aqui, começando logo pela questão da língua – a peça é falada em português e francês com legendas em português, que é o inverso do que aconteceu em Paris, por isso vai ser muito bonito. É um projeto diferente do habitual, para mim e para o meu percurso porque costumo partir de textos clássicos e Ítaca parte de um clássico, é certo, mas não é um texto teatral.
Por que é que esta peça faz sentido nesta bienal? Teve também a ver com a relação de Lisboa com o mundo, com o mar e o que isso tem de bom e mau?
É uma peça que tem muitos paralelos com os dias de hoje, sendo o mais evidente a crise dos refugiados, com todas as possibilidades que existem numa travessia, a ideia de construir uma nova casa, as tentativas de Ulisses de fazer essa construção e a forma como Ítaca é destruída pelo poder. Isso está muito ligado ao que se passa no Brasil. Há aqui uma grande angústia. Odisseia é também uma história de amor, de desejo de encontro e de afastamento. E depois há a questão da língua, que tive de rever, e que também tem um enorme poder, e da presença feminina, igualmente importante.
Defende um teatro feito para o agora e que aproxime o palco do público. Que Lisboa do presente encontrou quando aqui chegou com esta missão de ser a Artista na Cidade?
Eu tenho várias questões com Lisboa… Já cá tinha vindo algumas vezes, a primeira em 1992 e era um daqueles lugares que sempre esteve nas estrelinhas do meu mapa. Mas era uma relação temporária, que agora se transformou. Passei a ter uma maior proximidade e uma ligação mais constante. O facto de ser a Artista na Cidade fez com que deixasse de ser turista, tornou tudo muito mais rico.
É por isso que fala nos lisboetas como uma das maiores qualidades da cidade?
Ainda há pouco tempo passei na Cinemateca e admirei todos os seus recantos, Lisboa também é assim, as pessoas são esses recantos. E agora tive a oportunidade de criar um diálogo com elas, há uma nova intimidade entre artista e público em vez daquela periferia dos encontros. E também vejo que a cidade mudou muito. Sempre houve aqui uma sensação de história, mas que muitas vezes era quase um peso, como se o passado fosse sempre maior que o futuro, havia uma melancolia. Hoje é precisamente o contrário e isso é muito bonito. Sinto que a história passou a escrever o presente, mas que Lisboa mantém toda a sua poesia. E digo-o agora de dentro. Há uma nova modernidade, vejo-a nas artes, nos movimentos artísiticos, começou finalmente a descobrir-se a criação e o teatro portugueses e acredito também que o novo cinema português tem muita força, há por aqui uma enorme sofisticação e vibração.
Em setembro e novembro, vamos ver como é que o seu trabalho se aproxima do Cinema e mais uma vez como é que o espetador se aproxima do seu palco. Era um lado importante para mostrar nesta bienal? O Moving People, por exemplo, volta a abordar a ideia das migrações e da compreensão do outro…
Estou a trazer todas as peças na ordem em que foram apresentadas e o Moving People [ de 20 a 23 de setembro, Museu de Lisboa] faz essa transição e quer discutir o movimento, olhar para a proximidade e não para as distâncias, estabelecer pontes de diálogo. É um filme que vai ser feito ao vivo com uma tela gigante e as coisas vão acontecendo ao mesmo tempo que o público as vê. Tudo isso acontece num contentor e terá várias surpresas, transformando-se numa performance, a realidade tocando na ficção, que é o contrário do que costumo fazer. E A Falta que nos Move [24 de novembro, São Luiz], que decorre ao longo de treze horas numa sala, será um happening – será ao mesmo tempo uma festa e uma oportunidade de falar com as pessoas, pode-se assistir, beber um copo, estar de facto lá.