O filme devia-se chamar Sónia Braga, porque a atriz não se limita a ter uma interpretação extraordinária, ela é o próprio filme. Não é o papel de uma vida (até porque estes, enfim, são tantos), mas é a vida num papel, tão deslumbrante como autêntico, de uma visceralidade muito natural. No fundo, este Aquarius está para Sónia Braga como The Wrestler – O Lutador está para Mickey Rourke. Uma obra de profundo entendimento artístico, só possível com uma cumplicidade autoral tamanha que faz da atriz autora.
Dentro de tudo isto, por arrasto, chega um poderoso retrato geracional que ganha especialmente força na atual conjuntura sociopolítica do Brasil. Note-se que o filme foi rodado e concluído antes da ascensão de Temer, mas no festival de Veneza, onde foi estreado, a equipa fez questão de se manifestar contra a destituição de Dilma. É apenas coerente.
Aquarius retrata uma mulher de uma geração perdida, das ideias hippies humanistas dos anos 60, da luta contra a ditadura militar, com muitas drogas, sexo, rock’n’roll & bossa nova, que agora se vê tomada por uma sociedade canídea, distante do valor essencial das coisas. Clara vive tranquilamente num apartamento de um velho condomínio no Rio de Janeiro. Os donos do prédio querem deitá-lo abaixo para construir um condomínio de luxo. Determinada, luta com todas as suas forças para manter a casa, resistindo aos mais vis tipos de pressão.
Aquarius é o retrato de um mundo em luta. Por um lado, a própria Clara que se recusa a demolir o seu velho mundo, a casa onde os filhos nasceram e cresceram, em nome de uma qualquer mais-valia financeira. Por outro, há um questionamento sério sobre os valores da sociedade contemporânea, que torna as opções de Clara difíceis de compreender e a sua luta árdua. É a luta da memória contra o progresso, mas também das emoções contra o materialismo selvagem. Aquarius, que finalmente se estreia em Portugal, torna-se assim um símbolo da luta que o Brasil tem de travar. O filme nostálgico, mas de absoluta pertinência política.
Aquarius > de Kleber Mendonça Filho, com Sónia Braga, Humberto Carrão, Maeve Jinkings, Irandhir Santos > 145 minutos