Casais (des)apaixonados, a irracionalidade do desejo, o confronto com a morte, a paixão pelo futebol e, claro, a infidelidade. Nelson Rodrigues (1912-1980) chamava- -lhe “a vida como ela é…”, título do seu espaço de crónicas, escritas ao longo de uma década no jornal brasileiro Última Hora. São estes os grandes temas dos seus cinco textos encenados por Carlos J. Pessoa e interpretados por Nuno Nolasco e Nuno Pinheiro.
Os atores vão-se transfigurando entre rapariguinhas aparentemente frágeis mas demoníacas (as mulheres são invariavelmente as más da fita…) e machões com “personalidade de cavalleria rusticana”. Cada um deles tem ao seu dispor uma mesa com adereços que gere consoante cada quadro representado. Também o sotaque, brasileiro ou português, se assume como um adereço cénico eficaz. Ao fundo, são projetados elementos -chave da narrativa em grande formato: Pelé campeão do mundo, Clark Gable e Jean Harlow no filme Red Dust, a bandeira brasileira.
O encenador reconhece uma dimensão camiliana: “Estas crónicas de costumes têm o dom de divertir e, ao mesmo tempo, permitem-nos refletir sobre a forma como nos relacionamos uns com os outros”. Há um erotismo permanente nos textos que muito contribuiu para a aura de escritor maldito do cronista. “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”, resumiu o autor sobre si mesmo. Na luta entre contrariar ou sucumbir ao desejo está o seu jogo de cintura – que tanto pode ser a finta futebolística como o balanço erótico das ancas de uma mulher.
É fácil reconhecer Portugal no desejo salvífico que Nelson Rodrigues atribui aos brasileiros. Povo de “gratidão ressentida” onde “o canastrão da véspera pode ser o génio do dia seguinte”. O conto Agonia é o momento mais introspetivo do espetáculo, apenas com voz-off, fazendo ressoar os confrontos do autor com a morte daqueles que amou. “A Vida Como Ela É… é uma ideia um bocado panfletária porque, na verdade, estamos sempre a ser surpreendidos por ela. Caso contrário, haveria uma fórmula para viver”, diz Carlos J. Pessoa. A tentação de olhar pelo buraco da fechadura é irresistível.
A Vida Como Ela É… > Teatro da Garagem > R. da Costa do Castelo, 75, Lisboa > T. 21 885 4190 > 19-22 jan, qui-dom 21h30 > €5 a €10