Isabel Abreu está numa espécie de cozinha, que pode ser também uma espécie de gabinete de curiosidades – ou uma espécie de laboratório de alquimia. À sua volta, há verduras, legumes, animais de caça, ingredientes para um repasto, e livros, vários livros. Está sozinha e fala. Podia ser um solilóquio, mas rapidamente percebemos que tem mais de oração. Isabel fala com Deus, como com Deus falou nos seus diários de juventude a escritora americana Flannery O’Connor – os textos foram descobertos apenas há três anos e são levados agora ao palco pelo encenador Miguel Loureiro, em Um Diário de Preces.
“Sou católico e reconheço que tenho feito algum trabalho de uma certa militância, pondo em palco cenas que se aproximam do espiritual. O que chamo ‘cena teológica’”, diz Miguel Loureiro, identificando-se com Flannery O’Connor, alguém que, como ele, se interroga sobre “o que é ser artista num mundo dessacralizado”. “Ela era adolescente e nota-se uma escrita ingénua – mas também complexa e intensa – de quem tenta compreender o que se passa”, nota o encenador. “Para mim, o palco é um sítio de liberdade absoluta e é isso que me faz vibrar com o teatro: ser um veículo daquilo que queremos mostrar”, afirma Miguel Loureiro, que não hesita em levar para cena aquilo que o preocupa.
“Aquilo que peço é, na verdade, bastante ridículo. Oh, Senhor, o que eu digo é que neste momento sou um queijo, faz de mim uma mística, imediatamente. A verdade é que Deus é capaz disso – é capaz de converter queijos em místicos. Mas porque haveria Ele de o fazer em benefício de uma criatura ingrata, preguiçosa e suja como eu?”, pergunta aquela mulher, entre comida e livros. Não há catequese em cima deste palco, avisa-se já. Ao texto que aqui se ouve e se vive não falta dramatismo. “Como em Shakespeare”, sublinha Miguel Loureiro, lembrando como um texto nos pode falar da nossa vida e do que nos inquieta hoje, apesar de parecer tão distante.
As palavras de Flannery O’Connor soam na voz grave de Isabel Abreu, na sua cara esfíngica, no seu “lado forte e oculto, que às vezes se manifesta”, como descreve Miguel Loureiro, no seu “olhar que se perde”. Austeridade e doçura num só rosto que, dali, interpela uma força maior. “É um exercício metafísico, este, não queremos que seja terapêutico”, conclui o encenador. Um olhar que indaga o mundo a partir de um diálogo com Deus – e não é necessário ser católico para ouvir estas palavras. As questões temo-las todos.
Um Diário de Preces > Centro Cultural de Belém > Pç. do Império, Lisboa > T. 21 361 2400 > 22-25 set, qui-sáb 21h, dom 19h > €10