É um espaço de fronteira, entre rio e mar, condomínios luxuosos e bairros sociais, reminiscências rurais e piscatórias. Onde também há lugar para o insólito, percebemos, ao invadirmos um jardim privado com meia dúzia de antenas parabólicas escondidas entre as copas das árvores. Para lá da folhagem, ainda se avista a foz do Douro e aí a cidade parece ansiar por paragens longínquas. Intercalado pelo som das frequências de rádio e pela leitura de trechos do Diário das Nuvens, de Goethe (onde o autor descreve minuciosamente as suas observações do céu), o solo de dança de Ricardo Machado explora essa tensão entre as forças da natureza e a tecnologia (as clouds de informação, a pairar algures no mundo cibernético). Esta é uma das pequenas cenas de Espírito do Lugar 2.0, em que a Circolando volta a traçar um espetáculo-percurso que não obedece à lógica do postal turístico do Porto, desta vez, pela zona ribeirinha da Cantareira, envolvendo-se com o território e com a sua população. Como é habitual nas produções da companhia, haverá dança, teatro, música e vídeo, a convocar histórias e memórias, figuras do quotidiano e ilustres nativos cuja obra perdura no tempo.
Ao cair do dia, o público (dividido em seis grupos de 20 pessoas, conduzidos por um guia) é convidado a rodar por sete pequenos quadros cénicos, em sete locais distintos da Cantareira, entre o Bairro Rainha D. Leonor e os Pilotos da Barra. “A vantagem do percurso é permitir a descoberta deste território, o que não está visível”, sublinha André Braga, que assume a direção artística do espetáculo, em conjunto com Cláudia Figueiredo. Depois do reconhecimento da zona, os intérpretes de cada estação (Costanza Givone, Daniela Cruz, Gil Mac, Cláudio Vidal, Gonçalo Mota, Margarida Gonçalves, Paulo Mota e Ricardo Machado), estiveram durante cerca de uma semana a captar as energias destes palcos insólitos. Em alguns casos, contando com a colaboração e a participação dos habitantes na construção das suas performances.
Nos quadros próximos das águas da barra, exploram-se as vivências marítimas que Raul Brandão, filho e neto de homens do mar, ali nascido, descreveu na obra Os Pescadores. Nas zonas em que os contrastes sociais são mais gritantes, fala-se da especulação imobiliária à volta deste território tão apetecível, com as suas vítimas diretas a darem a cara e a abrirem as portas da casa-roulotte ali estacionada. No velho bairro Rainha D. Leonor, onde a reabilitação parece não ter solução à vista, uma fadista dá as boas-vindas ao público, numa sala fétida da antiga associação de moradores, clamando por um novo lar, “com muita calma e paciência”. O espetáculo terminará com todos os grupos reunidos no Orfeão da Foz da Douro, para o visionamento de um vídeo, gravado em alto-mar.
Esta é a segunda edição do Espírito do Lugar, um ciclo de trabalho de longa duração sobre os territórios da cidade, incluído no Cultura em Expansão, programa da responsabilidade da câmara municipal do Porto, com o objetivo de levar diferentes formas de expressão artística a zonas socialmente frágeis da cidade. O espetáculo-percurso durará cerca de 2h30, pelo que é aconselhável calçado confortável, agasalho e uma garrafa de água.
No sábado e no domingo, dias 17 e 18, às 22h, o público poderá ainda assistir, no Forte S. João Baptista, ao concerto Sibilo Reflexo, uma peça original do compositor Jonathan Saldanha, criada após a residência artística com a centenária Banda Marcial da Foz do Douro. Mais uma colaboração singular, a envolver os habitantes deste território.
Espírito do Lugar 2.0 > Cantareira (ponto de encontro: em frente ao armazém-barco dos pescadores) > 16-18 set, sex-dom 18h > Entrada Livre (aconselhável marcação prévia: geral@circolando.com)