Pelo longo corredor escuro, vemos a atriz, grande dama da representação que este ano cumpre 80 anos de carreira, a caminhar em direção à luz, à cozinha, ao coração da casa. E também a veremos a ser maquilhada, o rosto reconhecível de sempre, um pergaminho de emoções. Ou ainda atenta aos afetos de proximidade dos bichos de quatro patas que por ali andam. Ou a entrar em palco como se entrasse no que sempre foi seu.
É neste registo intimista que o realizador Tiago Durão filmou aquilo a que chama o “não documentário” Eunice ou Carta a uma Jovem Atriz – um filme biográfico que dispensa poses grandiosas, escolhendo antes os momentos quotidianos, os planos invisíveis, os tempos em família, as recordações de Eunice Muñoz, os momentos partilhados entre avó e neta, atrizes com genealogia comum que vivem juntas na mesma casa de Paço de Arcos há cerca de dez anos. E que, ao longo dos últimos meses, têm igualmente partilhado o palco na peça itinerante A Margem do Tempo, um texto de Franz Xaver Kroetz encenado por Sérgio Moura Afonso, que celebra a carreira ímpar, invulgarmente longa e consensualmente elogiada de Eunice Muñoz.
Após a antestreia de Eunice ou Carta a uma Jovem Atriz no cinema lisboeta São Jorge, em outubro passado, a obra foi exibida na secção Heart Beat do Festival Doc Lisboa, antes de chegar aos ecrãs de, pelo menos, 32 salas de cinema nacionais no início de novembro, tendo o alto patrocínio da Presidência da República no currículo, e os seus lucros de bilheteira doados à Casa do Artista.
À imprensa, Tiago Durão tem mencionado como referência e inspiração o documentário Sophia de Mello Breyner Andresen (1969) filmado por João César Monteiro (1939-2003), dedicado à poeta. Mas o realizador tem outra relação de proximidade com as figuras que filma, já que é igualmente o companheiro de Lídia Muñoz, e a vida real está bem presente durante os 47 minutos de Eunice ou Carta a uma Jovem Atriz: a câmara desliza pela esfera privada, pelas obras de artistas, fotografias de família, rituais da manhã, animais domésticos, gestos e palavras de carinho, pela relação de enorme proximidade entre avó e neta, pelas recordações ditas de viva voz. Como quando Eunice recorda também a sua avó, “uma atriz maravilhosa” que a deixava num pranto quando a via em palco.
Cúmplices e admiradores, amigos de longa data, ajudam a compor o puzzle visual sobre a mulher que vive na atriz maior que usou o talento no teatro, na televisão, no cinema. O filme biográfico conta igualmente com as vozes dos atores Luís Miguel Cintra e Ruy de Carvalho, com poemas de António Barahona da Fonseca (poeta com quem a atriz foi casada), com a Sonata para piano nº 14 de Beethoven interpretada por Maria João Pires e Matthias Dobler. É uma sentida e orgulhosa passagem de testemunho entre gerações de artistas que o público tem o privilégio de observar, e sobre o qual Eunice declarou: “Acompanhei todas as fases do filme e achei que não podia existir melhor lugar de memória, porque é assim que eu sou, é assim que quero que guardem uma memória de mim.”
Eunice ou Carta a uma Jovem Atriz > RTP2 > 23h26