Há dragões, mortos-vivos, homens gigantes, um corvo com três olhos, um exército de eunucos… Já não apetece ver, pois não? Pelo menos são estas fantasias que afastam um certo tipo de espectadores deste género de séries de televisão. Paradoxalmente, haverá poucos programas com tamanha dose de realidade (e de realismo) como a saga A Guerra dos Tronos. Há dias em que nem o Telejornal nos dá tantos “murros no estômago”…
As fantasias estão lá, mas elas são menos elementos externos de um mundo estranho, construído de raiz para nos pasmar, e mais representações do nosso mundo, do nosso País e da nossa aldeia. Encontramo-las até dentro de nós e, por isso mesmo, nos aterrorizam tanto. A Guerra dos Tronos é assim: psicanálise. Umas vezes interpretada como a verdadeira ciência que é; outras vezes sob o ponto de vista das “patranhas” de auto-ajuda. Mas, no fim, aquelas personagens de ar medieval, capazes do melhor e do pior que o ser humano pode oferecer, são, simplesmente, gente como nós. E o público vê-se ao espelho.
Não é à toa que esta “fantasia medieval” bate recordes de audiência (legal e pirata). O fenómeno da identificação é poderoso e, tal como os sonhos, a série desassossega os nossos medos e os nossos desejos. Neste sentido, nada é mais representativo da condição humana do que a inquietante muralha gelada de 200 metros de altura por 400 quilómetros de comprimento, construída para separar dois mundos. Ali, em cada escavadela há uma metáfora.
Depois, ao contrário de outras “fantasias” como O Senhor dos Anéis ou Harry Potter, em A Guerra dos Tronos, as personagens são um bocadinho mais complexas, para lá do maniqueísta “bom que é sempre bom” e “mau que é sempre mau” – Daenerys Targaryen é a grande heroína, de face humana e sentimentos puros, libertadora dos escravos, e é também bastante cruel, conseguindo facilmente deixar um rasto de cabeças espetadas em estacas, por onde passa. Mas isso é o menos.
E, afinal, o que aconteceu a Jon Snow, traído pelos seus homens, numa cena que “cita” o assassinato do imperador romano Júlio César, cercado e esfaqueado à vez? Será que Melisandre… São adivinhações. Por esta altura, além da equipa da série, só Barack Obama saberá o que aconteceu ao bastardo de Ned Stark. Porque o Presidente dos Estados Unidos pediu para ver os episódios da sexta temporada antes da data da estreia. E ainda revelou que a sua personagem favorita é o anão Tyrion Lannister. Mas quem não gosta dele?
George R. R. Martin, o autor da obra As Crónicas de Gelo e Fogo, que deu origem à série televisiva, teve de esperar por esta conjuntura favorável ao género high fantasy, como é apelidado, para sair da sombra. O primeiro volume de As Crónicas…, justamente intitulado A Guerra dos Tronos, foi lançado em 1996, mas ninguém deu por isso. Entretanto, o primeiro livro de Harry Potter é publicado em 1997 e, em 2001, surgiu o primeiro filme da saga O Senhor dos Anéis (que J. R. R. Tolkien escrevera nos anos 30 do século XX). A “fantasia científica”, como elementos da ficção científica, volta a estar na moda e há toda uma apetência por esses “mundos secundários”, onde “tanto o autor como o espectador podem entrar, para a satisfação dos seus sentidos enquanto estão lá dentro”, como os definia Tolkien.
Num artigo publicado no jornal inglês The Guardian, o escritor e jornalista Paul Mason analisou outros fatores da popularidade do género: “Na moderna fantasia científica há sempre uma crise do sistema: tanto da ordem económica como das auras de poder – a magia – que delas emanam. Há, na teoria literária, um termo técnico para esta crise: thinning… ou seja, ‘a ameaça constante de declínio’, acompanhado de um luto omnipresente e sentido de injustiça no mundo.” A Guerra dos Tronos tem tudo isto e mais alguma coisa. O “mundo secundário” que nos deleita está lá, erigido sobre dois grandes continentes: Westeros, onde um só monarca é senhor de sete reinos unidos; e Essos, constituído por várias “cidades livres”, cada qual com o seu governo. A história, a geografia, a cultura, os sistemas políticos e as diferentes religiões são ricos o suficiente para manterem o público “agarrado”.
No centro, há toda a intriga política à volta das ambições das elites de Westeros sobre quem herda o “trono de ferro”, ou seja, o poder. E quando se lê “intriga” também pode ler-se “carnificina”, tendo como pano de fundo a tal “ameaça constante de declínio”. E essa ameaça pode ser económica, política ou social. Algo palpável e concretizável. Ou então é aquele medo polar, lá do norte gélido de Westeros, do “Outro” que existe para lá da muralha, e que nos horroriza tanto quanto nos desafia a olhar para ele. Ou melhor, a olhar para nós.
A ansiedade dos fãs pelo destino das personagens nesta sexta temporada faz com que os trailers que a HBO tem divulgado batam todos os recordes de visualizações.
Syfy > estreia 25 abr, seg 22h10