Em 2024, Gisela João percorreu muitos palcos a festejar os 50 anos do 25 de Abril com canções (a maioria de José Afonso): A Morte Saiu à Rua, Vejam Bem, Que Amor Não me Engana, mas também Acordai, de Fernando Lopes Graça, e Inquietação, de José Mário Branco. Em 2025, essas versões (tocadas e construídas com os músicos Carles Rodenas Martínez e Luís “Twins” Pereira) dão corpo ao quarto disco de estúdio da fadista nascida em Barcelos em 1983, Inquieta.
Acha que uma canção pode mudar as nossas vidas – para não dizer “o mundo”?
Acho, acho mesmo. Olhem para mim… Isso aconteceu comigo. Até diria mais “a poesia” do que simplesmente canções. Interessa-me sempre mais a história que estou a contar, as palavras, do que o modo muito perfeitinho de cantar. E acredito que o que estamos a dizer pode mudar vidas. A poesia mudou a minha vida.
Para chegar às canções que estão neste disco houve um trabalho de procura, motivado pelos 50 anos do 25 de Abril e o mote da liberdade, ou foi uma coisa mais afetiva e pessoal?
Este disco é um belo exemplo daquelas coisas que “têm de ser” e nem sabes bem porquê. As coisas que mais nos encantam na vida, o amor e a arte, serão sempre supermisteriosas. Este disco nasce sem ser esperado, planeado. Eu estava, aliás, a gravar outro, a que vou voltar em breve. Mas quando fiz os concertos das comemorações do 25 de Abril, percebi que não me sentia bem se aquelas canções ficassem só por ali. Pensei: “Preciso de gravar estas músicas!” Até podia ser só para mim, para ficar um registo.
E a escolha das canções?
Foi feita para os concertos. A Grândola e o Depois do Adeus teriam sempre de estar lá, fazem parte da História de Portugal, não só da música. Eu, depois da pandemia, achei mesmo que ia ser feliz a fazer outras coisas, que não fazia sentido continuar na música. E, de repente, percebi que com estas músicas estava, também, a cantar a minha liberdade. Na Balada do Outono [de José Afonso] há aquela parte: “… que eu não volto a cantar.” E isso falou muito comigo. Porque nos últimos anos essa era uma frase diária na minha vida.
A maioria das canções no disco são do José Afonso…
O Zeca Afonso é o meu artista favorito, no meu País. Da forma completa como ele é: música, poemas… Era incrível. Faz parecerem simples coisas que são complexas. Em miúda ouvia muito Zeca Afonso. Quando pensei nestes concertos achei sempre que ia ter muito mais músicas do José Mário Branco e do Sérgio Godinho e, lá está, às vezes não interessa tanto o que achamos que queremos, precisamos mesmo é de outros caminhos, e é por aí que temos que ir.
Só uma canção do disco não tem a letra original, Que Força É Essa, do Sérgio Godinho, que cantou na versão recente da Capicua. As canções também são organismos vivos…
Ainda estava a preparar os concertos e um dia percebi que todas as canções à minha frente eram de homens. Isso deixou-me furiosa. Mesmo tendo noção de que os tempos eram outros. Lembrei-me de que nesse mesmo ano, no Dia da Mulher, a Capicua tinha lançado a sua versão do Que Força É Essa, o que me deixou muito feliz. E decidi cantá-la, com autorização da Capicua e do Sérgio, claro.

Estas canções salvaram-na desse afastamento que sentia em relação à música?
Sem dúvida. Sinto que estas canções fizeram parte da libertação do meu povo, da nossa História, mas não me falam só da liberdade política em tempos de ditadura, falam-me da minha própria liberdade, diária. Andei muitos anos a correr e precisava de parar um bocado. Este disco empodera-me muito.
Acha que há fado neste Inquieta?
Não acho, tenho a certeza. Para mim, o fado é muito mais do que a forma, do que as regras das estrofes e das músicas. O fado é uma forma de vida, de sentir a vida. Que passa muito por empatia, pelo sentir do outro, pelo sentido de comunidade. Em qualquer coisa que eu faça, o fado estará lá.