Às vezes, gostava de sentir menos pressão. Mas ser a segunda escritora de Omã a publicar um romance e sobretudo o primeiro autor árabe, homem ou mulher, a ganhar o Man Booker International, um dos mais importantes prémios de língua inglesa, com o romance Corpos Celestes, não ajuda.
Hoje, é convidada para festivais em todo o mundo, incluindo em Portugal, onde esteve recentemente a participar no 5L, sendo vista como representante do seu país e da sua sociedade. Mas Jokha Alharthi apenas se vê como uma professora universitária, especializada em poesia árabe clássica, e como uma escritora entregue à sua imaginação, mais do que à realidade (ainda que tudo parta do que observa).
Nascida em 1978, numa família de poetas e contadores de histórias, ela própria é um testemunho das vertiginosas mudanças que Omã tem atravessado, principalmente desde 1970, quando foi abolida a escravatura. Estudou em Londres, regressou ao seu país e procura um equilíbrio entre a tradição e a modernidade, tal como as personagens do seu novo romance publicado em Portugal, Laranjeira-Amarga (Relógio d’Água, 208 págs., €18).
Dos seus romances poderíamos dizer o que diz a famosa canção de Bob Dylan: “Os tempos estão a mudar?”
Sim, interessa-me captar a mudança em que cresci, nos valores e nos modos de vida, aquela que todas as pessoas tiveram e têm de enfrentar, o que, para alguns, resultou no confronto com situações que nunca se colocavam no passado. A mudança em Omã foi muito rápida, ao contrário do que aconteceu noutras sociedades.
Já li que, como escritora, não quer julgar pessoas. Também não lhe interessa julgar essa mudança?
Exatamente. Não acredito no pensamento que se divide entre o certo e o errado, o preto e o branco. Tudo é sempre mais complicado. Para algumas pessoas, a mudança foi para melhor. Para outras, representou um grande sofrimento, em múltiplos sentidos. O que me interessa, acima de tudo, são as pessoas: como pensam, reagem e sentem, quer em relação à mudança, quer em relação a todos os aspetos da vida, como a amizade, o amor, as escolhas que fazemos.
Essa mudança também é interessante porque divide famílias?
Sim, sim. É muito comum, em Omã, haver pais que nunca tiveram acesso a qualquer educação e filhos que estão a acabar um doutoramento. Esse é o maior fosso, quase como se fossem dois países diferentes; mas ele também está nas normas sociais. O que antes não era aceite é, hoje, comum. E o mesmo está a passar-se comigo e com os meus filhos [risos].
O que distingue, atualmente, a geração dos seus filhos?
O meu grande desafio, por exemplo, é tentar que eles ouçam, pelo menos, uma música em árabe, quando toda a minha infância e juventude foi feita a ouvir o repertório da nossa cultura. Com a internet e as redes sociais, há uma linguagem universal a impor-se. Valorizo muito as diferenças culturais de cada país e as suas tradições. Tomar o mesmo pequeno-almoço em Muscat, onde vivo, ou em Lisboa não me faz muito sentido. A globalização tem aspetos positivos, não se pode negar, mas será que nos aproximou uns dos outros?
E o que diz a sua experiência?
Os movimentos nacionalistas que vemos um pouco por todo o mundo são certamente um sinal de que essa globalização não nos aproximou. É, como disse, um processo muito complicado, com muitas ramificações, que os meus romances tentam captar. É que não são só tradições que se perdem quando se prefere falar em inglês – são várias línguas e culturas.
A tradição tem, por vezes, má fama. O que mais valoriza nela?
As pequenas coisas, nada do que seja folclórico. A indumentária, a música, as artes tradicionais, que, neste momento, estão em risco de desaparecer. Também a arquitetura mais antiga, que, nos países do Golfo, tem dado lugar a tudo o que é novo. Mesmo em relação aos nossos dialetos, o da capital está a ganhar terreno a todos os outros. É como se a diversidade estivesse condenada.
Curiosamente, os seus romances estão cheios de vozes e são, na sua forma, muito inovadores. Escrever é viver a tensão entre o novo e a tradição?
Tinha razão quando afirmava que nada é preto e branco [risos]. Sou, acima de tudo, uma observadora; não defendo a tradição nem a inovação. Escrever é também uma forma de pensar sobre estes assuntos, e o pensamento cria o seu próprio caminho, por vezes inesperado. Nesse sentido, escrever é igualmente uma descoberta. Hoje, diz-se muitas vezes que os meus livros são um bom retrato da sociedade de Omã. Mas, quando os escrevi, não tive essa intenção. Escrevi-os em árabe e nunca sonhei que poderiam vir a ser traduzidos. Claro que podem ser lidos por quem quer conhecer qualquer coisa do meu país, tal como eu também faço lendo o Chile de Isabel Allende ou o Portugal de Saramago. Mas é sempre preciso ter algum cuidado.
Porquê?
Porque nunca é a realidade; é uma imagem dessa realidade criada por um escritor. Trata-se da visão de um autor específico, o país que ele tem na cabeça ou recria literariamente.
Em Laranjeira-Amarga, vemos os dilemas da sua geração…
Sim, é verdade. Esse dilema está em todo o lado, sobretudo nas mulheres da minha geração, que têm de encontrar um equilíbrio entre o que pode e não pode ser aceite. Daí que a narradora do meu romance, Zuhour, estudante omanense em Londres, esteja sempre a pensar na avó, que nunca teve a hipótese de escolher o rumo da sua vida.
A culpa que sente advém da consciência do seu privilégio?
Acredito que sim. Ela tem a consciência de que até há muito pouco tempo, sobretudo nos séculos XIX e XX, só pouquíssimas mulheres conseguiram fazer um percurso académico de sucesso. Não lhes faltava inteligência, mas a oportunidade de estudar não era para todas as mulheres. Era preciso ser filha de professores ou nascer numa família rica.
É por isso que escreve sobre mulheres?
Também há alguns homens [risos]. Mas em certas sociedades, em certas circunstâncias, há histórias que só sendo mulher se podem conhecer em profundidade, ter acesso a elas, compreendê-las em todos os seus sentidos. E foram essas histórias que, por ser mulher e estar junto de outras mulheres, me marcaram. Não foi necessariamente uma escolha, embora saiba que as mulheres têm, incluindo na literatura, muito menos voz do que os homens.
Devemos escrever sobre o que conhecemos?
Nem sempre. Escrevo sobre o que conheço e sobre o que quero conhecer. E mesmo quando se trata da minha experiência, nunca sei contá-la com exatidão. Se o fizesse, a minha imaginação ficaria de fora – e é dela que, enquanto escritora, me alimento.