Diz José Saramago, numa das suas célebres epígrafes, no caso escrita para A Viagem do Elegante, que “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”. O mesmo talvez se possa dizer de certos romances, que chegam sempre a ser escritos, por mais que pareçam improváveis ou uma exceção num percurso literário. Nos seus últimos anos de vida, a mãe de Lídia Jorge pediu-lhe, por diversas vezes, que escrevesse um romance chamado Misericórdia. De início, a escritora não percebeu o alcance do desejo materno, ou por que razão vinha com um título tão concreto e definido, capa para toda uma filosofia. Isto passou-se nos últimos anos de vida da sua mãe, quando já vivia na Santa Casa de Boliqueime, concelho de Loulé. Depois, veio a pandemia, em 2020, e as portas do lar foram encerradas por perigo de contágio. Lídia Jorge e Maria dos Remédios viram-se, pela última vez, a 8 de março de 2020, porque 40 dias depois a sua progenitora morreria, aos 92 anos, vítima de Covid-19.
“Impressionou-me muito a forma corajosa, determinada e sábia como a minha mãe encarou os últimos anos de vida”, garante Lídia Jorge numa entrevista que nos concedeu e que publicámos na íntegra na mais recente edição do Jornal de Letras, Artes e Ideias. Foi esse exemplo que quis partilhar em Misericórdia, romance que escreveu com a urgência dos livros que têm mesmo de ser escritos, dos romances aonde afinal sempre se chega. No título e no pedido – reiterado no próprio dia 8 de março –, a escritora encontrou o que mais preocupava a sua mãe: que as pessoas tivessem mais compaixão entre si, sobretudo quando ficam sozinhas e dependentes. “Nem todos envelhecem de igual modo. Há quem envelheça com raiva, outros com despeito, outros sentem-se vítimas de uma melancolia sem fim e há quem não sinta nada disso porque simplesmente deixa de ter consciência”, sublinha. “A maior parte, contudo, pelo que me é dado a ver, quer viver, continua a ter objetivos, faz amizades, sonha com o amor, ri-se e troça. Resiste, debate-se, discute, envolve-se com o andamento do mundo, cumpre um tempo comum.”
Socorrendo-se de todas as ferramentas e recursos da literatura, Misericórdia é um romance que cruza todos os géneros, convocando o conto, a narrativa biográfica, a crónica, o testemunho, o diário e a memória. Conta a história da sua mãe, mas sem a contar. Conta a história de todas as mães, mas a partir de uma única. É o efeito uno e universal da grande literatura, que entrelaça realidade e imaginação. Sem o ter vivido, Lídia Jorge recria o quotidiano de um lar de idosos, que de espaço fechado e virado para dentro se torna um microcosmos da humanidade que nos define.
Nas páginas deste livro, o Lar da Santa Casa transforma-se em Hotel Paraíso, e Maria dos Remédios transfigura-se em Maria Alberta Nunes Amado, ou dona Alberti, como é conhecida, que deixa num gravador 38 horas de pensamentos, observações, sentimentos e histórias. Ao ouvi-las e ao transcrevê-las, a narradora do romance apercebe-se de que, a cada dia, surgem novas lutas, outros objetivos, uma obsessão que se impõe, como a de descobrir como se escreve Baku, onde fica e de que país é capital. E, em cada quarto, uma galeria de personagens encerra todas as nossas esperanças e contradições.
Este é, por isso, um romance mais sobre a vida do que sobre a morte, de existências que se renovam constantemente, de um “fulgor” que surpreendeu Lídia Jorge: “Interessa-me a batalha humana no seu conjunto, o sentido da vida que se questiona no final, como quando somos adolescentes: De onde venho, para onde vou, quem sou? O que faço aqui no meio da multidão? A Humanidade tem lugar digno no meio do Cosmos ou é um acaso? Estas são as perguntas a que dona Alberti conduz no meio do Hotel Paraíso.”
Misericórdia é, ainda, um romance sobre cuidadores, cuja bondade e atenção, tantas vezes desconhecidas da sociedade, superam em muito qualquer caso negativo que possa chegar aos jornais e às televisões. “Não escrevi para denunciar, muito menos para culpar instituições, mas sim a pensar no embate no íntimo de cada pessoa quando se encontra em situações concentracionárias”, esclarece Lídia. E esse embate também passa pelo diálogo entre uma mãe e uma filha, entre a força e a fragilidade, o passado e o futuro, o que se vive e o que se escreve, o que se sabe e o que se intui. Devolvendo a empatia que Maria dos Remédios pediu a Lídia Jorge que escrevesse, Misericórdia conduz o leitor comovido aonde devíamos estar sempre: na vida que se vive até ao fim.
A leitura de Tolentino
Já nas livrarias, o novo romance de Lídia Jorge (Dom Quixote, 464 págs., €21,90) foi lançado dia 21, na Biblioteca Palácio Galveias, em Lisboa, com apresentação de José Tolentino Mendonça. Na sua intervenção, o cardeal começou por lembrar que Lídia Jorge “perdeu a mãe em abril de 2020, mas talvez perder aqui seja um verbo inadequado, talvez devêssemos dizer que a reencontrou”. E recordou que há “uma literatura inteira que nasce do impacto dessa experiência” de perda/reencontro, de que são exemplos George Simenon ou Annie Ernaux: “É talvez a prova mais difícil para um escritor: transformar em história a própria mãe, a figura mais íntima, aquela que a cada momento foi o princípio de tudo, e conseguir fazê-lo sem omitir nada do que se viveu, nem a pobreza, nem as cicatrizes, nem a violência, arriscando contar e prolongar a força luminosa, a doçura infinita de um incomparável amor.” Para Tolentino Mendonça, Misericórdia é um “extraordinário romance” que nos devolve a “condição humana” e nos leva a uma “meditação sobre o que se vive até ao fim”. E tendo em conta a perda de valor social que os velhos têm na nossa sociedade, “dedicar um romance à ‘misericórdia’ é um ato de insubmissão e coragem cívica”.