1. Tudo Recomeça, de Aldina Duarte
Com um álbum acabado de editar (Roubados) e uma digressão marcada, Aldina Duarte viu a pandemia interromper-lhe os planos. Quando, meses depois, regressou aos palcos, percebeu que algo tinha mudado. Os fados que sempre cantara haviam-se tornado outros. “Já não contavam as mesmas histórias e isso mudou tudo: o ritmo, a sonoridade, as palavras, a poesia…”, conta a fadista. “Pensava conhecer estes fados de trás para a frente e de repente tudo me parecia tão desconhecido que até me sentia mal fisicamente.” Um dia, em palco, decidiu ouvir bem cada uma das palavras que cantava e começou a sentir “uma gratidão enorme” por aquelas pessoas de máscara ali à sua frente, apenas para a ouvirem. “Percebi que me tinha acontecido algo que já ouvira a fadistas mais velhos: apesar de os fados serem os mesmos, eles vão-se transformando noutra coisa à medida que o tempo passa.” Decidiu, então, colocar-se à prova, reinterpretando em disco, acompanhada à viola e à guitarra portuguesa, alguns dos fados tradicionais que sempre cantou ao vivo, mas agora sob esta nova perspetiva, quase catártica. Dá o exemplo de Estação das Cerejas, com letra de João Monge, que sempre interpretou como “uma história de amor” e foi agora transformado “numa canção de esperança na vida só por si”. A abrir o disco, o inédito Ela, de Manel Cruz (Ornatos Violeta), é a exceção que confirma uma regra de Aldina: total fidelidade ao fado tradicional, mesmo quando a partir dele cria algo completamente novo. “Ela não aprende a ser outra, é só isso, sempre foi”, canta.
2. Amélias, de Amélia Muge
Como aconteceu na sua estreia discográfica, o título do novo álbum de Amélia Muge volta a jogar com o nome da autora. Em 1992, editou Múgica e agora chegou às lojas Amélias. O uso do plural, percebe-se rapidamente, não é fortuito. Desde os primeiros segundos, encontramos Amélia Muge em várias polifonias, canções entoadas a várias vozes – com a particularidade de todas essas vozes, ora sobrepostas, ora em volteios livres, serem da mesma pessoa: Amélia Muge, claro. Chegados ao fim dos 13 temas, temos a convicção de que este é um álbum feito com tempo, rigor e muito prazer. A grande maioria das letras e composições é da autoria da própria Amélia Muge, mas há outro protagonista no resultado final deste Amélias, gravado em tempo de confinamentos e distâncias sociais obrigatórias (o que explica, só em parte, a criativa e produtiva conversa entre as várias vozes de uma mesma artista, que sempre gostou destes jogos polifónicos): António José Martins (Trovante, Gaiteiros de Lisboa…), responsável pelos arranjos e por muitos e inventivos efeitos e apontamentos sonoros. O registo das canções é de um grande lirismo, às vezes acrescentado de humor e de um surrealismo que faz pensar na mais livre das heranças de José Afonso. Um exemplo? Este verso no tema Versão Condensada do Nascimento dos Desertos: “Esta é a história de Belzebu, quando ele um dia se constipou…” Amélia Muge tem uma voz própria na música popular portuguesa atual. Neste caso, várias.
3. Jangada, de Mário Laginha
Já há 15 anos que Mário Laginha (piano), Bernardo Moreira (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria) tocam lado a lado enquanto trio, num trabalho materializado em dois álbuns, Espaço (2007) e Mongrel (2010), mas acima de tudo em muitos quilómetros de estrada e horas de palco. Costumam apresentar-se como amigos que fazem música juntos e talvez nunca, como agora, essa descrição tenha feito tanto sentido, pelo modo como conseguiram transformar em música conceitos tão abstratos como liberdade, cumplicidade ou confiança. Apesar de grande parte das músicas ter sido criada por Mário Laginha antes da pandemia, os sucessivos confinamentos e consequentes cancelamentos de espetáculos acabaram por se revelar uma oportunidade para o trio, que passou a encontrar-se semanalmente, apenas pelo prazer de tocar junto. O objetivo, confessou Mário Laginha, “era já fazer um disco a partir desse trabalho regular enquanto banda” e o resultado, percebe-se em Jangada, está muito próximo das atuações nos concertos, “com muito mais liberdade e improvisação” do que as habituais sessões de estúdio. Um dos melhores exemplos é The Stone Raft, uma extensa faixa, com mais de 16 minutos, que o pianista imaginou como banda sonora para o romance Jangada de Pedra”, de José Saramago.
4. Estação #60, de Guitolão Trio
Depois de já ter colocado o “guitolão” em diálogo com o contrabaixo de Carlos Barretto, num álbum editado em 2015, António Eustáquio regressa com Estação #60, e esse instrumento criado pelo mestre Gilberto Grácio, a pedido de Carlos Paredes, surge agora acompanhado pelo violino de André Gaio Pereira e o acordeão de Fábio Palma. O mais recente cordofone português apresenta-se como “uma guitarra portuguesa com uma sonoridade mais ampla e uma personalidade muito própria”, como uma combinação “entre a guitarra portuguesa e a guitarra acústica”. O primeiro a ser criado e apresentado ao mundo (existem apenas três exemplares) foi precisamente o de António Eustáquio, músico e compositor residente em Castelo de Vide, onde se tem assumido como uma das figuras de proa das novas paisagens sonoras do Alentejo. A meio caminho entre a música tradicional e as sonoridades mais urbanas do jazz e até do rock, Estação #60 (dedicado ao mestre Gilberto Grácio, falecido no ano passado) é baseado em dois poemas: Meditação, de Maria de Guadalupe, e Caminar por Caminar Cansa, do espanhol Antonio Gómez. Libertação, o último tema, é dedicado à memória de Aristides de Sousa Mendes, mas esse título também podia ser aplicado ao modo como António Eustáquio tem tratado o “guitolão”, singular instrumento.
5. Chá Lá Lá, de Miguel Araújo
Já lá vão dez anos desde que uma canção chamada Os Maridos das Outras começou a passar na rádio, elevando o então quase anónimo guitarrista dos Azeitonas, Miguel Araújo, ao estatuto de estrela da pop nacional. Dotado do “superpoder das melodias”, como um dia disse, a seu propósito, o pianista António Pinho Vargas, o músico e cantor portuense está agora de regresso com um dos seus discos mais orelhudos, como se percebe rapidamente ao ouvir temas tão irresistivelmente trauteáveis como Talvez se Eu Dançasse (apresentado ainda antes da pandemia), Dança de um Dia Normal ou Karma Kamikaze. O título do sexto álbum de originais de Miguel Araújo, Chá Lá Lá, não engana, aliás, ninguém. O próprio autor assume o disco como “uma espécie de compilação de canções inéditas”, em contraposição aos álbuns anteriores, “quase sempre temáticos e com uma narrativa muito própria a ligar as músicas”. Desta vez, mergulhou no seu imenso arquivo em busca daquilo a que chama “músicas mais ‘chá lá lá’”, para cumprir a promessa feita há alguns anos ao seu manager de um dia gravar essas canções esquecidas no fundo da gaveta. O resultado é um verdadeiro álbum pop, de singles, composto por esse super-herói “das melodias”, e com as participações especiais de António Zambujo, em Dia da Procissão, Joana Almeirante, em Baby (Chá Lá Lá) ou Rui Pregal da Cunha, Rui Reininho e Tim nessa ode às músicas das nossas vidas que dá pelo nome de Canções da Rádio, assim resumidas num único refrão: “Só gosto de ti, porquê, não sei, ai o que eu já chorei por ti, em câmara lenta como na TV.” Parece simples, mas não é…