“Pode ler-se todo O Ângulo Raso como uma peça de fantoches, em que todos e cada um são títeres manipulados por uma voz narrativa que lhes dá unidade e os faz, à vez, avançar no proscénio”, escreve Paula Morão no prefácio deste romance escrito por Fernanda Botelho (1926-2007) aos 31 anos. Fantoches envolvidos em avanços, recuos, falsas partidas, chegadas truncadas, caminhos paralelos, que ecoam a “dimensão simbólica da geometria”, os desígnios do dito ângulo raso, das retas opostas que não se cruzam.

Nesta história dividida em três partes, em que as vozes interiores das personagens comandam, a autora cria um retrato polifónico, brinca com o tempo. Há o desencantado médico Samuel, que se envolve com a rapariga vinda da província, Cláudia. Há o artista Tom, a quem uma morte corta o ímpeto artístico, e Maria Angélica, Jequinha, que contabiliza a vida em função de quem partiu, e Jonas que, depois do verão, regressa à “terra”, todos eles sacudidos pela morte de Lúcia Lima, cruzando-se no Café Royal ou no Rossio. Um retrato humano que, nas palavras do crítico João Gaspar Simões, em 1957, se ocupava pela primeira vez da “Lisboa dos meios paraintelectuais”.
Isto é filtrado por uma escrita ágil e de referências cultas, por alusões autobiográficas e um protagonismo dado às personagens femininas – e por uma fina ironia, na linguagem e no pensamento, que não suspende a elegância narrativa. Tudo boas razões para continuarem a ser feitas as manobras de ressuscitamento de Fernanda Botelho, uma das grandes vozes inexplicavelmente esquecidas da literatura portuguesa contemporânea.
O Ângulo Raso (Abysmo, 264 págs., €17) foi o primeiro dos 12 romances de Fernanda Botelho. A Abysmo, editora criada por João Paulo Cotrim, reeditou já Esta Noite Sonhei com Brueghel, A Gata e a Fábula, Lourenço é Nome de Jogral e Gritos da Minha Dança.