É um género muito frequentado, e não só por escritores, o do “livro de memórias”. Aqui é praticado, de certa maneira, por Mário de Carvalho fugindo ao peso habitual desses volumes. Mesmo literalmente: em menos de 200 páginas cabem 96 capítulos, textos brevíssimos com “um limite de palavras” autoimposto pelo autor. Com títulos quase sempre muito diretos e informativos (Sapadores, Cafés de LX, Os Soldados de Chumbo, Gaguez…), são rápidas revisitações de momentos, lugares, pessoas (umas vezes com nome, outras não). São como um relâmpago fugaz a disparar algures nos 77 anos da vida do escritor, ou como a luz rápida de um farol, que vai iluminando certa parte da paisagem enquanto deixa tudo o resto no escuro.
A escrita é a que já lhe conhecemos bem, cultivando discrição e ironia, rigor, clareza e, aqui mais do que nunca, espírito de síntese. Ou seja: ouve-se a voz de Mário de Carvalho. Ao partilhar com os leitores estes “relances” pessoais, o autor não deixa de mencionar, várias vezes, a falta de confiança na(s) suas(s) memória(s) – “Eu, castigado de débil memória (só desgostos…)”; “Aliás, a memória era razoável e sem as deteriorações que hoje a embaraçam”; “Os becos, travessas e escadas (e atalhos) que nós ficámos conhecendo… Arrenego da maldita memória que mos abafa lá para baixo.”
Muitas vezes regressa à sua infância, no Alentejo (Alvalade), em Setúbal e em Lisboa, sobretudo à volta da Penha de França e da Graça. Também a vida paralela de “clandestino” ligado ao PCP no final do Estado Novo, com os seus encontros secretos, senhas, “pontos de apoio” e prisões ressalta em vários textos. Quem entrar neste livro de memórias (ou “do esquecimento”, como o autor sugere na última prosa) movido por alguma curiosidade voyeurista não sai totalmente defraudado.
O percurso do escritor está aqui, e ele deixa-nos espreitar, ainda que com zonas de sombra (“De amores e desamores não falei. Cumpri” é a última linha do livro). Sobre a “longa e dolorosa” separação do PCP, por exemplo, é muito claro: “Senti, em dada altura, que já me ouvia a dizer coisas em que não acreditava”; “Eu assisti (deixemo-nos de partes – eu também fui presa dessa crença…) a pessoas altamente qualificadas a fazer o elogio da União Soviética e das maravilhas que lá pululavam. (…) Opressão, pobreza, mentira, incompetência, desgosto, tudo lhes escapava.”
Sem organização cronológica, este volume é um puzzle desarrumado de peças. Uma vida, afinal.