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Ir às compras é um ato político, religioso e sobretudo totalitário. Não há, na vida, mais nada a não ser adquirir um objeto de desejo. O mote de Reino do Amanhã é tão simples quanto isto. Ballard leva-nos, mais uma vez, a reboque de uma das suas obsessões, que o acompanhariam até ao fim (este foi o seu último romance, publicado em 2006; o autor viria a morrer em 2009): os subúrbios das sociedades pós-industriais, autossuficientes, fechadas sobre si próprias e com as suas gentes a morrer de tédio. Uma panela de pressão que, mais tarde ou mais cedo, fará eclodir a violência. E é isso que testemunha o protagonista, Richard Pearson, publicitário recém-desempregado que ruma a um desses subúrbios londrinos, Brooklands, para desvendar quem assassinou o seu pai num megacomplexo comercial, centro da vida e sociedade do bairro. Famílias, reformados e trabalhadores gravitam à volta do centro; fazem as suas compras, põem os filhos na creche do centro comercial, e assistem a desportos de contacto físico intenso, rugby e futebol.
Ao mesmo tempo, forma-se nessa comunidade uma espécie de governo paralelo, obscuro e ultranacionalista. A diversão, além dos jogos que reúnem os habitantes em matilha (envergando camisolas com a cruz de São Jorge) consiste em ataques a casas de imigrantes e a abrigos para pessoas que buscam asilo. Mais do que saber a verdade sobre a morte do pai, Pearson vai deixar-se absorver por aquela sociedade, que ele próprio ajudou a desenvolver. E note-se que Ballard concebeu esta história muito antes da xenofobia generalizada perante os refugiados que chegam à Europa e dos fenómenos Trump ou Brexit…
“O capitalismo está a coçar o rabo, tentando perceber onde é que poderá cagar a seguir”, diz uma personagem. Sinal de fim dos tempos? “Há em Ballard uma certa melancolia que o arrasta para o apocalíptico, essa afeção que fez do medo o princípio de realidade”, escreveu José Bragança de Miranda no prefácio a uma edição portuguesa de Crash, de 1996. Mais atual do que nunca.
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Reino do Amanhã (Elsinore, 352 págs., €19,99) é o último romance de J. G. Ballard. Nascido na China em 1930, filho de pais ingleses, o autor esteve num campo de prisioneiros na Segunda Guerra Mundial, o que serviu de base para o seu romance Império do Sol, adaptado ao cinema por Steven Spielberg