A biografia teceu-lhe a própria escrita, e a forma como é lida. Paul Bowles, um dos mais célebres expatriados literários, produziu narrativas exemplares das incompreensões e diferenças entre ocidentais e árabes (mas não só). Nascido em Nova Iorque em 1910, estudou música na Europa, mas, depois da II Guerra Mundial, abandonaria tudo, incluindo os fatos elegantes e o snobismo, instalando-se com a mulher, Jane Bowles (autora de Duas Senhoras Bem Comportadas), em Tânger – oásis libertador dos espartilhos sociais.
Bowles era um dandy fascinado pelo mundo árabe, e preteriu os exotismos à proximidade com o Outro. Podemos ler as suas histórias como fábulas adultas: os ocidentais perdem habitualmente o norte (senão a dignidade, a posição social, ou a vida) em confronto com a realidade do deserto ou da medina (ou, por vezes, da montanha índia), os muçulmanos mostram a simplicidade brutal das suas regras de vida, as convenções sociais desagregam-se sempre. E não há muitos finais felizes ou redentores. À luz da atualidade, em que a inocência e o fascínio deram lugar a medos globais, Bowles poderá, certamente, ser agora lido de forma diferente, medrosa. Mas a sua escrita crua, sensual, sóbria, capaz de descrever violências como se estas fossem uma aragem sussurrante a desfazer dunas de areia, e atenta aos milagres luxuriantes da natureza de Marrocos ou da Argélia, mantém encanto e poder particulares. E essas qualidades estão patentes, em maior ou menor grau, em À Beira da Água, compilação de 29 contos, datados entre 1946 e 1964.
Curtíssimas histórias perfumadas de vocábulos estrangeiros – que acentuam a estranheza entre mundos – e protagonizadas por gente que perde o pé, o controlo, a razão, quase sem saber porquê. As consequências de pequeninos gestos, como a humilhação impensada de um pequeno, uma palavra dita no momento errado, um afeto não correpondido, desencadeiam dilúvios. Cabe-nos deixarmo-nos ir na corrente.
À Beira da Água (Quetzal, 512 págs., €19,90) é o primeiro de dois volumes dedicados aos contos de Paul Bowles, as curtíssimas ficções que o escritor produziu entre os anos 1940 até 1976.