Terminar a refeição com um pão e um copo de tinto Enxarrama 2014, o vinho mais antigo de que há registo escrito em Portugal, de finais do século XIII, não acontece em muitos lugares. É preciso ser uma casa especial, como é a partir de agora A Cozinha do Paço, para idealizar um momento como este. É no gabinete do morgado, com lareira acesa e janelas a toda a volta, que se molha o pão quente no azeite A Galega. À mesa, predomina o aroma do feno que Afonso Dantas reconheceu quando chegou a Évora, no verão passado, diretamente da ilha da Madeira, onde nasceu há 25 anos.

Agora, com o apoio do chefe Manuel Maldonado (100 Maneiras), aqui como consultor, Afonso, que já trabalhou em restaurantes em França e no Audax (uma Estrela Michelin), no Funchal, quer honrar o lugar onde está e a sua história, redescobrindo o que aqui se comeu. “Vou trabalhar o Alentejo com finesse”, resume o jovem obstinado.
Essa delicadeza surge em vários momentos dos quatro menus de degustação, como as tradicionais “migas de assobio”, pão e toucinho elevados a espuma de migas, papada curada crocante, rebentos de coentro, alho negro e espargos.

Na primavera, os menus pensados para serem exclusivos – com acesso à biblioteca do produtor, ou seja, a vinhos que já não se vendem em loja – terão ainda mais produtos da horta, como as ervilhas e as favas que o senhor António gosta de plantar. O chefe, entretanto, também já explicou ao responsável pela sementeira que as alcachofras afinal não são uma praga e as curgetes e os rabanetes não precisam de pesar três quilos.
“O que define o terroir é o que lhe falta”
Até nos sentarmos na sala da garrafeira, passamos pelo pátio do recebimento, onde as gentes pagavam ao morgado, antes de assistirem à missa na capela, onde foi descoberto um fresco de São Cristóvão, junto à adega, localização comum à época. A decoração de Ana Trancoso, desde a cozinha e a sala no piso intermédio até ao salão nobre, prima pela baixa intervenção, mas com objetos de muita precisão – tal qual o conceito de António Maçanita para as suas vinhas de sequeiro.

São mais de 60 hectares de vinha em agrofloresta, em harmonia com a horta, as ovelhas, as vacas e as galinhas. “A agricultura é o Homem a intervir no meio natural, pode ser a conviver ou a arrumar”, diz Maçanita, enquanto nos guia até à mesa. “O que define o terroir é o que lhe falta, não a abundância”, elucida.
O entusiasmo de António Maçanita, 45 anos, é contagiante. Seja a relembrar quando há dez anos quis comprar a D. João Saldanha o Paço do Morgado de Oliveira, fundado em 1304, casa fortificada agrícola com vista para Évora, seja a dar a provar o mais recente lote branco Fita Preta 2024. Defensor do “respeito pela memória coletiva”, na agricultura, nas castas e no património arquitetónico, o enólogo prefere inventar de novo em vez de copiar. É isso que também acontece n’A Cozinha do Paço.
Com cerca de 30 lugares disponíveis, sempre com reserva, aqui as refeições requerem vagar, disponibilidade para se estar, saborear, apreciar e criar novas lembranças. Virados para o altar, comemos o primeiro snack, um peixe de rio curado em vinho tinto e caviar com o espumante Blanc de Blancs Fita Preta. Já na cozinha, Afonso Dantas tem preparado o tártaro de lúcio-perca, lagostim do rio e crocante de grão, para depois dar uma colher de café com ovas de pimpão curadas a cada pessoa.

No copo, o Tinta Carvalha 2022, tinto da vinha Chão dos Ermitas, acompanha o torricado de veado e cogumelo, segue-se um estaladiço coscorão de borrego, tomatada, salsa e gema de ovo (com Fina Flor, um branco ao jeito dos vinhos de Jerez envelhecidos em solera); cogumelos salteados, castanha fermentada, espuma de abóbora e rebento de borragem (com Palpite 2008, a segunda colheita de um branco emblemático da adega).
O próximo momento, saberemos no fim que foi um dos preferidos do almoço: enguia fumada (numa conserva de escabeche), ervas, pinhão, manteiga de pinhão e dashi de enguia (com Rosé da Fita Preta Non-Millésime Cuvée n.º 2 2016). Completamente fora do convencional, o vinho e a sua combinação com a eiró.
É no prato de peixe que Afonso abre a mala trazida da Madeira: pregado grelhado e funcho (aroma doce a que lhe cheirou a terra nos dias quentes do verão) e molho beurre blanc com manteiga de ovelha (branco Morgado de Oliveira, o primeiro vinho da propriedade, 100% Arinto, plantado em sequeiro, em modo biológico).

Momento esperado, o da carne; escolha inusitada, a da proteína, num tributo ao frango do campo com avelãs e praliné de couve-flor (Preta Homenagem David Booth 2021).
Lentamente, em direção ao fim, houve surpresas nas sobremesas: pera fermentada com queijo azul, pérolas de iogurte, jus de maçã fermentada; e laranja, mel e açafrão (na vez do tradicional azeite), uma referência à “memória coletiva”. No copo, um dourado Laranja Mecânica (“como se fosse um bisque de camarão, cheio de sabor”, feito de películas prensadas, maceradas e reprensadas). É preciso processar a informação e arrumá-la na pasta certa, para quando a memória for à gaveta dos pequenos grandes prazeres.
A Cozinha do Paço > Adega Fita Preta, Paço do Morgado de Oliveira, Estrada M527, km10, Évora > T. 91 588 0095 > seg-sex almoço 12h, 14h, qui-sex jantar 19h > Menus Clássicos 6 momentos, 5 vinhos €135, Clássicos e Colheitas Antigas 6 momentos, 5 vinhos €180, Aquém e Além-Mar 9 momentos, 7 vinhos de Portugal continental e ilhas €255, O Enxarrama 9 momentos, 7 vinhos €285, todos com água, café e chá