Aurora Goy está de malas feitas para ir passar o Natal a Noyon, a cidade a cerca de 100 quilómetros de Paris. É lá, na casa onde vivia a avó Laurinda, que grande parte da família se reúne. A chefe de cozinha de 35 anos, nascida e criada em Gaillac, perto de Toulouse, França, é filha de mãe portuguesa (Maria Dolores) com raízes em Sezures, Braga, e de pai francês (Jacques Goy), daí que costume definir a sua comida como “um reflexo dos dois países.”
“A minha cozinha é simples, mas ela tem de facto bastante técnica, sempre dentro de uma ótica de valorizar o produto e a sazonalidade. Gosto quando os clientes me dizem que aquele prato lhes traz uma memória”, conta-nos num português afrancesado, no restaurante que abriu vai para seis anos no Porto.
O Apego, na Rua de Santa Catarina, entrou para a lista dos Restaurantes Recomendados do Guia Michelin em 2024. Apesar de lhe ter trazido mais clientes a esta sala intimista com paredes em granito, onde cabem 20 pessoas ao jantar, Aurora Goy não ambiciona ter mais do que esta distinção. “Não trabalho para a Estrela Michelin, tenho uma equipa pequena [são seis pessoas a contar com a chefe], uma comida simples e de conforto. Quero continuar a aprender sobre cozinha, é o que me faz crescer enquanto cozinheira. Valorizo a minha vida pessoal e isso não é compatível com uma Estrela”, sublinha.
Convívio na cozinha e dançar
Na pequena cozinha do Apego, vestida de jaleca branca, Aurora Goy abre meticulosamente as ostras (de Aveiro, neste caso) com a ponta de uma faca e a ajuda de um pano. “Gosto de manter a água”, diz. No fogão, já tem quase no ponto o béarnaise, o molho “bem francês”, feito com vinho branco, vinagre, chalota, estragão e funcho – uma das ervas que mais usa na sua cozinha. Será com ele que irá depois cobrir as ostras dispostas em cima de uma camada de sal.
Na noite de 24 de dezembro, passada habitualmente com a família da mãe (dos 13 tios, dez são mulheres), “há sempre ostras, bolinhos de bacalhau, sonhos, e quilos de salmão fumado” feito pelo irmão [também cozinheiro]. “Houve uma altura em que fazíamos folar de carne, uma receita de uma avó transmontana do meu primo. Este ano, estou a pensar voltar a fazê-lo, vou até levar alguns enchidos daqui, do Porto. E também vou experimentar os bolinhos de jerimu com abóbora, uma receita da minha avó Laurinda que eu adorava”, recorda. A Consoada, confidencia, é feita “de muito convívio na cozinha e de dança”. “Antes ou depois da refeição, as minhas tias gostam sempre de dançar música portuguesa e francesa”, ri-se.
Aliar tradições
Para o prato principal da ceia que preparou para a VISÃO, Aurora Goy decidiu aliar as tradições da família, juntando o bacalhau com um jus de carne. Começa por colocar uma posta de bacalhau fresco a cozer ao vapor num cesto de bambu, ao qual adicionará a redução de um caldo de carne (já antes preparado e feito com ossos de vaca, asas e uma carcaça de frango). Para acompanhar, serve um puré de aipo, que lhe faz lembrar a sopa que o pai costuma fazer, couve-flor e umas folhas de grelos cruas “para intensificar o sabor”.
“O bacalhau e a carne são dois elementos muito característicos do meu Natal. Temos um forno a lenha em casa da minha avó que gostamos de usar. Fazemos lá o bacalhau com molho de cebolada, tomate e batata às rodelas, ao jeito do Bacalhau à Braga. Como os meus primos costumam caçar, pode haver javali ou veado. Mas borrego ou anho assado no forno com batatas e couve é o mais clássico.” No dia seguinte, em casa do pai, a tradição passa quase sempre por uma ave, que pode ser peru ou frango. “E morcela branca [boudin blanc], que se come habitualmente com puré ou maçãs caramelizadas”, conta.
Um choux de cada vez
Para a sobremesa, Aurora Goy escolheu o clássico e delicado choux francês – a massa, feita com leite, água, manteiga, açúcar, farinha e ovos, já havia cozido nessa manhã no forno, durante 17 minutos.
Ao lume, vai aquecendo o leite com cardamomo, gemas e farinha de alfarroba, para o creme inglês que acompanhará os choux no momento de servir. Antes, há de recheá-los, um a um. Através de um furinho e com a ajuda de um saco de pasteleiro, enchem-se de creme de castanha e levam puré de marmelo por cima. Os dois frutos, a castanha e o marmelo, lembram-lhe o Natal e costumam acompanhar os queijos franceses numa refeição na qual nunca pode faltar a aletria do Norte de Portugal nem o tronco francês gelado “para facilitar a digestão”.
Dos Natais da infância – umas meias da princesa Pocahontas e um conjunto de plasticina, diz terem sido os melhores presentes que recebeu em criança –, Aurora guarda inúmeras memórias. “Tenho a lembrança de uma sala gelada em casa da minha avó, onde ela guardava a aletria, o pão de ló e o bolo-rei que comprávamos numa mercearia portuguesa. Nessa sala, sentia-se o cheiro a Natal com tudo misturado”, recorda, sem conseguir disfarçar as saudades da avó Laurinda, falecida há dois anos.
Trocar as letras pelos tachos
O restaurante de Aurora Goy – “Apego é o sentimento que une uma pessoa às pessoas ou coisas de que gosta”, lê-se no menu – é o reflexo da sua vida. Formada em Literatura, foi só quando ajudou o pai a servir num casamento, em França, que percebeu que o que queria fazer na vida era, afinal, cozinhar.
Começou por tirar uma formação na Escola de Hotelaria e Turismo em Biarritz, passou depois pelos restaurantes Guy Savoy e L’Auberge du 15 (Paris), Le Domaine des Andéols, chefiado por Alain Ducasse (em Luberon, no Sul de França) e, mais tarde, já em Lisboa, pelos restaurantes Tavares e Belcanto de José Avillez.
De uma viagem de autocarro “solitária e de introspeção”, durante quatro meses pelo Brasil (Rio de Janeiro, Bahia, Chapada Diamantina, Lençóis do Maranhão, Belém do Pará), nasceu a vontade de abrir um restaurante próprio em França ou em Portugal. A escolha pelo Porto acabaria por ser óbvia: “Sinto-me mais em casa no Norte [em criança, passava as férias de verão em Sezures, Braga, e em Candedo, Trás-os-Montes]. Nunca fui de grandes cidades. Cresci num lugar pequeno. Achei que o Porto era um meio-termo: tem diversidade, cultura, mar, e, ao mesmo tempo, é mais calmo do que Lisboa”, justifica. E é nesta simplicidade que se tem sentido feliz.
RECEITAS DA CONSOADA
Ostras e béarnaise
Ingredientes (4 pessoas)
- 8 ostras
- 200 g manteiga derretida
- 160 g vinho branco
- 80 g vinagre
- 4 gemas
- 1 chalota
- 1 colher de sopa de estragão seco
- Sal
Preparação
- Abrir a ostra com a ajuda de uma faca, tentar não perder a água e tirar as casquinhas que podem cair.
- Para a béarnaise, juntar o vinho branco, o vinagre, a chalota picada, o estragão, levar ao lume e reduzir até obter 70 g de líquido filtrado.
- Derreter a manteiga.
- Coar a redução e acrescentar as gemas, misturar e cozer em banho-maria até chegar a uma temperatura de 70 ºC.
- Fora do banho-maria, emulsionar o sabayon com a manteiga derretida (esta deve estar à temperatura ambiente).
- Servir no momento por cima da ostra.
- Dica: Pode usar um sifão de culinária para conservar a béarnaise mais tempo. Basta colocá-la no sifão e acrescentar duas cargas de gás.
Bacalhau, jus de carne, aipo e couve-flor
Ingredientes (4 pessoas)
- 4 postas de bacalhau fresco (ou demolhado)
- 200 g couve-flor
- 1 kg raiz de aipo
- 200 g folhas de grelo
- 3 kg de ossos de vaca e asas de frango
- 1 carcaça de frango
- 3 cebolas
- 100 cl vinho tinto
- 1 cabeça de alho
- 1 molho de tomilho
Preparação
- Para o puré de aipo, assar o aipo no forno e triturar com um caldo de legumes até chegar a uma consistência homogénea.
- Cozer a couve-flor num cesto de bambo ao vapor (10 minutos).
- Para o jus de carne, assar os ossos de vaca e as asas do frango no forno com as cebolas às rodelas e o alho inteiro cortado ao meio até ficar corado. Tirar do forno, acrescentar o vinho tinto e raspar o fundo do tabuleiro para descolar os sucos da carne. Juntar tudo ao caldo de frango feito com a carcaça de frango e deixar reduzir em lume brando até metade. Depois, filtrar e deixar reduzir até à textura de um jus de carne.
- Cozer o bacalhau ao vapor por 12 minutos (conferir o ponto com um palito).
- Servir o bacalhau com o jus de carne, o puré de aipo e a couve-flor queimada com o maçarico.
Choux de castanha, marmelo e alfarroba
4 pessoas
Massa Choux
Ingredientes
- 200 g leite
- 160 g água
- 150 g manteiga
- 8 g açúcar
- 8 g sal
- 200 g farinha
- 6 ovos
Preparação
Ferver o leite, a água, o açúcar, o sal e a manteiga. Acrescentar a farinha e trabalhar a massa em lume médio até ficar homogénea e mais seca. Formar os choux com um saco de pasteleiro, num tabuleiro forrado com papel vegetal, colocar um disco de craquelin por cima e levar ao forno, por 17 minutos, a 180 ºC.
Craquelin
Ingredientes
- 50 g manteiga
- 62 g açúcar amarelo
- 62 g farinha
Preparação
Trabalhar a manteiga até ficar numa consistência de pomada e misturar os restantes ingredientes. Esticar pedaços da massa entre duas folhas de papel vegetal. Guardar no frio para usar nos choux.
Creme Inglês
Ingredientes
- 0,5 l leite
- 8 sementes de cardamomo
- 1 colher de sopa de farinha de alfarroba
- 5 gemas
- 100 g açúcar
Preparação
Aquecer o leite com cardamomo e a alfarroba. Deixar infusionar. Misturar as gemas, o açúcar e o leite coado. Levar ao lume até chegar aos 70 ºC. Guardar no frio.
Compota de castanha
Ingredientes
- 500 g castanhas
- 375 g açúcar
- 200 g água
Preparação
Cozer as castanhas e fazer um xarope com o açúcar e a água. Quando cozidas, colocar as castanhas no xarope e deixar reduzir. Triturar até ficar liso.
Creme de castanha
Ingredientes
- 333 g compota de castanha
- 100 g natas
Preparação
Misturar a compota de castanha fria com as natas montadas e rechear os choux com esse creme.
Marmelos em calda
Ingredientes
- 1 kg marmelos
- 500 g açúcar
- 1 l água
Preparação
Cozer os marmelos na calda de água e açúcar (45 minutos). Usar uma parte do marmelo para fazer um puré e a outra para enfeitar o prato.
Finalização
Rechear os choux com o creme de castanha. Colocar o puré de marmelo por cima e servir com o creme inglês.