Restaurante Desarma: Saborear a Madeira para lá do pau de louro e da poncha

Restaurante Desarma: Saborear a Madeira para lá do pau de louro e da poncha

Assim que saímos do teleférico que nos ajuda a ultrapassar a descida a pique até à Fajã dos Padres, ao nível do mar, ficamos de queixo caído com a vegetação que quase nos engole. Torna-se impossível ignorar as árvores de frutos tropicais, como mangas, papaias, bananas, claro, e outras que nem sabemos bem a que sabem, como pitangas ou peras-abacate.

As borboletas, enormes, passam constantemente por nós, deixando um rasto de beleza a condizer com a Natureza que nos esmaga: uma escarpa gigante que cai até aqui abaixo, um oceano que nos oferece alguns remates turquesa e uma temperatura que não custa mesmo nada a vencer. A fajã, que quase parece uma estufa, visita-se, tem até um pequeno alojamento, mas é terreno privado, não vale apanhar fruta, que aqui cresce desbragada e é toda biológica.

Mas pode comprar-se. É isso que faz Octávio Freitas, o chefe Estrela Michelin que está do lado de lá do bonito balcão de mármore italiano do restaurante Desarma, no Funchal. “Encomendamos 50% da manga que produzem na Fajã”, regista, trajado a rigor e com um copo de vinho da sua produção em riste, como quem brinda à ilha que desde sempre o mantém apaixonado.

“Vou contar histórias através dos alimentos. O meu menu é mais produto do que receituário. Esta é uma ilha pequena, toda banhada a sal. Temos coisas incríveis, quase abençoadas”, havia explicado nessa manhã, à mesa do pequeno-almoço no Mercado dos Lavradores, onde o chefe gosta de vir, de vez em quando, sobretudo para deitar um olho ao peixe que Sérgio Gonçalves lhe arranja.

A quota do atum já foi atingida. Agora só pode ser pescado em setembro – ainda há alguns exemplares a serem desmanchados à vista dos turistas que passam. Mas o que abunda é o peixe-espada e também a cavala, o chicharro, as lapas e os caramujos (só marisco da rocha, pois não há captura de arrasto nem de anzol). E o peixe-porco, uma espécie que dantes era descartada, por ser difícil de amanhar (tem a pele muito dura), e que hoje ganha novo brilho pela sua textura parecida com a do frango. Aliás, Octávio levaria uns quantos para o menu da noite. 

De frente para a cozinha aberta, toda pensada e construída com requintes de quase malvadez, vemos peixes pendurados, já bastante secos, tal como sempre se fez na Madeira. Do lado oposto, há uma vitrina com presuntos fumados e enchidos marinhos, inventados pela jovem equipa de Octávio Freitas (90% têm menos de 30 anos), assim como os frascos de fermentados – exemplares que entram nos menus deste Estrela Michelin (seis, nove ou 12 momentos, este último só ao balcão e com lugar para improviso).

O Desarma fica no último piso do hotel The Views Baía, no Funchal. Foto: Henrique Seruca

“Parece que tudo na Madeira é sobre poncha, bolo do caco ou espetadas”, queixa-se o chefe, definindo-se como um sonhador que gosta de recuperar tradições, para que não se percam na espuma dos turistas aos molhos. Por exemplo, na zona do Curral das Freiras, uma aldeia nascida na cratera de um vulcão, é a castanha que brilha: há queques, broas e outras doçarias que o chefe leva na mala do carro para inspirar a sua equipa de pastelaria, depois de bebermos um licor deste fruto que se seca em esteiras ou em areia.

Quem poderia imaginar que por aqui se consomem lapas à curral, nome curioso para castanhas assadas na frigideira? No menu do Desarma, comeremos lapas, das que existem na rocha, mas secas, tal como faziam os emigrantes para as transportarem no porão. Continuamos a preferi-las frescas, simples, grelhadas com alho e limão, tal como as provámos no restaurante da Fajã dos Padres. 

Aos 70 anos, Arsénia Silva anda de volta do lume, para que não se apague a fogueira de rua, em cima da qual pôs dois grandes tachos de alumínio com vides no fundo para não pegar, água até acima, uma pitada de sal, salsa, flor de azeda e brigalhós a cozer há quase 24 horas para lhes retirar o “picor”. Briga quê? A pergunta não é original: trata-se de uma raiz que nasce espontaneamente e que durante muito tempo foi consumida para se matar a fome. Hoje, são poucos os que, como Arsénia, se dedicam a preservar este produto. O chefe nunca cozinhou tal coisa, mas compra agora um quilo de brigalhós para experiências na cozinha Michelin, que hão de valer-lhe uma queimadura na língua.  

Mergulho inesquecível

O menu Batalha do Chef é para demorar pelo menos duas horas e meia, num ambiente descontraído e de proximidade. No final, aprende-se muito sobre a gastronomia da ilha. O amuse-bouche, por exemplo, é para comer à mão, deleitados com a harmonia da apresentação: crocante de tapioca e lingueirão com lula curada, maionese de agrião e óleo de avelã.

A longa experiência ao balcão do Desarma leva-nos, durante mais de duas horas, por uma viagem através das tradições gastronómicas da ilha, aqui preservadas e reinventadas com base no sabor e numa apresentação delicada. Foto: Tiago Maya

No momento seguinte também se dispensam os talheres, numa evocação do ambiente dos bares que rodeiam o mercado do Funchal e que abrem ainda de madrugada. Lá, a ementa é só petiscos, como gaiado seco em cebolada ou vinagrete, bife de atum com molho vilão, carne em vinha de alhos, língua estufada ou sandes de espada em carcaça de boa qualidade. Algumas destas receitas são recriadas em versão fine dining. “Cada vez mais quero imortalizar técnicas antigas”, afirma Octávio, que também prefere controlar todo o processo: “Tudo o que servimos é transformado por nós, do pão à manteiga, passando pelos presuntos, gelados e bombons.”

Entretanto, o sommelier João Barbosa avisa que gosta de trazer dinamismo e ousadia à mesa e isso sente-se logo no tinto que abre esta viagem. E há de ser assim em todas as mudanças de vinho, algumas delas a levarem-nos para a produção do chefe, banhada a maresia 365 dias por ano.

A comida da ilha, assim tão bem casada com bebidas que nos dão notas de fruta fresca, faz com que o mergulho da manhã, nas águas mornas da Fajã dos Padres, esteja em loop na nossa memória. Mergulho esse reavivado quando rematamos a refeição, já a noite vai alta, com um Madeira reserva especial, saído de uma seleção de 100 referências, e nos lembramos da história contada lá em baixo, no meio do arvoredo: foi naquela fajã que se plantaram, pela primeira vez, as castas de uvas usadas para fazer este vinho típico. Voltemos ao teleférico e que ele nos devolva às alturas.

O coração inteiro na ilha

Aos 42 anos, Octávio Freitas ganhou uma Estrela Michelin sem nunca ter trabalhado fora da sua Madeira natal

Foto: Tiago Freitas

Ainda estava na escola primária e já sabia exatamente o que queria fazer na vida. Por isso, foi com naturalidade e total apoio da família que, aos 16 anos, Octávio Freitas entrou na Escola de Hotelaria da Madeira, ao mesmo tempo que se aventurava na copa da cozinha do Dona Amélia, um restaurante muito conhecido na ilha. “Na altura, ser cozinheiro não era giro, acho que estava abaixo de pedreiro”, lembra, soltando uma gargalhada. Em casa, o exemplo chegou-lhe das hortas que ainda hoje são cuidadas pelo pai e das refeições que a mãe preparava.

No entanto, sempre quis ser autónomo, aprender e ter contacto com os clientes. Passou pela cozinha de vários hotéis, ao mesmo tempo que criou a sua escola de formação. Também faz consultoria a diversas empresas do setor e é presença assídua na televisão regional. Além disso, mantém há 18 anos um programa na Antena 1 que gira em torno de conversas gastronómicas.

Como qualquer insatisfeito nato, ainda derivou para outros ramos da hotelaria, abrindo o turismo rural Socalco Nature Calheta, onde fica o seu atelier. É lá que também produz vinho.

Há 16 anos que é chefe executivo do grupo The Views. O Desarma é o novo projeto de fine dining, que motivou grande investimento, acabando com o último piso do hotel The Views Baía para dar espaço à criatividade do chefe, que nunca havia trabalhado neste segmento. Quando reuniu a equipa pela primeira vez, disse que queria ganhar uma Estrela Michelin. Foi necessário apenas um ano para que o sonho se realizasse. “Não é preciso sair da Madeira para se ter sucesso e ser reconhecido”, garante.

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