Pap’Açorda: Muito mais do que um restaurante

Pap’Açorda: Muito mais do que um restaurante

Podemos começar por citar a famosa mousse, aquela que vem numa enorme taça e que dantes era servida, à discrição como ainda hoje, com a ajuda de uma colher de pau e que fica completamente sólida no prato. E assim viramos a refeição de pernas para o ar, um pouco como este restaurante – muito mais do que um restaurante, na verdade – fez ao statu quo implementado no pós-revolução e a um Bairro Alto que ainda era apenas tascas, casas de fado e prostituição.

“Sou eu que faço a mousse sozinha, dez a 12 quilos por semana. E a envolvência final é sempre à mão. Dantes, o processo era todo manual. A receita veio da mãe do Zé Miranda [um dos sócios] e foi sendo alterada e melhorada ao longo dos tempos”, conta Manuela Brandão, responsável pela cozinha do Pap’Açorda, desde que saiu de Trás-os-Montes para Lisboa, há quatro décadas, aos 17 anos, com a intenção de vir ter com o primo Fernando Fernandes, que tinha emigrado para cá há muito mais tempo, para o pai integrar a equipa de construção da ponte sobre o Tejo.

No final do liceu, Fernando ingressou em Economia, mas aos 20 anos cedeu ao chamamento de um dos irmãos para trabalhar com ele no Pátio Alentejano, um restaurante na Costa da Caparica, a fazer de tudo um pouco. Foi essa experiência de apenas dois anos que levou para o arriscadíssimo Pap’Açorda, um lugar que não tinha igual em todo o País, ainda a cheirar a bafio de quase meio século de mordaças.

Quarenta e três anos depois da abertura e de todo o sururu causado na época, ainda é deles o leme, embora tenham tido dois sócios (além do José Miranda, o Manuel Reis) e hoje seja o filho Ricardo, de 34 anos, quem, na realidade, comanda as tropas.

Manuela Brandão, responsável pela cozinha, e Fernando Fernandes

Há clientes que estiveram na inauguração, no Bairro Alto, e continuam a vir atualmente ao primeiro andar do Mercado da Ribeira, sítio para onde se mudaram em 2016. Alguns participaram com orgulho no livro de celebração, prestando o seu testemunho, usando muitas vezes a expressão “casa” para se referirem a esta instituição lisboeta.

O Bairro Alto começou a piorar, e nós sentíamo-nos uma ilha no meio daquela confusão desordenada, que afastou o nosso público

Fernando fernandes

“Somos muito discretos, pois houve alturas em que os destinos do País eram discutidos à mesa do nosso restaurante”, lembra Manuela. Será difícil esquecerem Mário Soares, um cliente muito especial e assíduo, que adorava comer ora pregado frito com arroz de tomate ora bife à portuguesa, e que por aqui passou em diferentes fases do seu percurso político. Mas, fazem questão de dizer, não tomam partidos, tratando todos da mesma maneira elegante. Os empregados da sala também são especiais, porque os sócios empenharam-se em mudar o paradigma do serviço à mesa, e isso nota-se até nas fardas. As próximas, ainda por estrear, serão de Dino Alves.

As histórias do restaurante foram reunidas no livro Pap’Açôrda (Contraponto, 176 págs., €29,90)

“O Bairro Alto começou a piorar, e nós sentíamo-nos uma ilha no meio daquela confusão desordenada, que afastou o nosso público”, recorda Fernando, sem nostalgias do passado, mas concordando que aquele espaço, uma antiga taberna, com um enorme pé-direito e mármores cor-de-rosa, se tornou irrepetível. E lembra, com gosto, a erosão que o trio provocou num bairro aonde, antes do Pap’Açorda, ninguém ia. Manuel Reis já lá tinha a loja da Atalaia, aberta em 1979; no ano seguinte ao restaurante, inaugurou o Frágil – eis a santíssima trindade da nova Lisboa, na década de 1980.  

Na lógica da inversão, seguimos encantados com umas costeletas de borrego panadas, acompanhadas de esparregado e batatinhas bem fritas. Este é outro do ex-líbris da equipa de Manuela, juntamente com a açorda que lhe deu o nome, em 1981, que vem aconchegada num tachinho vermelho e é mexida à mesa (o segredo está no pão caseiro, na qualidade dos coentros e do camarão, nas horas de lume, sempre a dar à mão). “São clássicos da vida toda”, nota Fernando, que se diz meio reformado, aos 66 anos. Estar aqui hoje foi uma exceção, aproveitada para matar saudades destes pratos de que tanto gosta e que já não come assim com tanta frequência.

A açorda que deu o nome ao restaurante, em 1981, vem aconchegada num tachinho vermelho e é mexida à mesa

Antes, a dar início à refeição, picámos uns peixinhos da horta, os inconfundíveis pastéis de massa tenra, umas favinhas e aquele paté de santola que fica mesmo bem quando barrado no pão – tudo receitas da cozinha tradicional portuguesa, mas com uma apresentação melhorada e com pequenos twists que Manuela foi implementando ao longo das décadas. As sugestões, que abrem a ementa, mudam a cada 15 dias e estão ligadas à sazonalidade.

O que também mudava sempre eram as flores no balcão, com arranjos exuberantes da autoria de Zé Miranda, perpetuados com igual gosto por Fernando Fernandes. Hoje, quem for ao Pap’Açorda encontrará duas esculturas vermelhas, da autora de Pedro Cabrita Reis, em homenagem a esses recantos floridos. Os tempos mudaram, sem que isso seja mau.

Pap’Açorda > Mercado da Ribeira > Av. 24 de Julho, 49 > T. 21 346 4811 > ter-qui, dom 12h-24h, sex-sáb 12h-02h

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