
Vasco Célio
Uau. É a onomatopeia que me ocorre, assim de repente, para melhor definir a noite que acabei de registar no meu bloquinho “à antiga”, com ajuda de um lápis amarelo, já quase um coto à custa de tanto escrever e, claro, de o afiar.
Depois de um lauto brunch, servido nos jardins em cima da piscina, com disputa entre o chefe libanês Joe Barza, do Conrad Cairo, e Osvalde Silva, do nosso Conrad, eis que chega a hora de vos contar como é que são as festas recheadas de Estrelas Michelin. Na verdade, são como as outras, com boa comida, álcool, animação e muita música, embora com outro requinte. A esta, a que chamaram Underground Culinary Extravaganza, não faltou nem um pormenor. Quando desci à garagem, por volta das sete e meia, esperava algo de bom, mas afinal encontrei tudo extraordinário.
Até os graffitis que vi, mal entrei na zona menos nobre deste hotel de seis estrelas algarvio, estavam a matar com o ambiente. Soube mais tarde que tinham sido desenhados por alunos das Belas Artes, há já dois anos. Até pareciam encomendados de propósito para a ocasião e para torná-la ainda mais underground. A luz, claro, era do tipo néon, daquela ótima para não se ver rugas nem irregularidades, mas péssima para quem, como eu, aponta tudo a lápis.
Havia meia dúzia de carros antigos à vista. Afinal, o palco disto tudo é a garagem. As linhas brancas a traçar retângulos à dimensão dos automóveis não enganam. Olha, agora há ali quem se exiba ao som de um a batida forte, em manobras de breakdance, a que atualmente chamam hip hop.
Vamos mas é parar em todas as estações e apeadeiros, assim como quem precisa de apreciar cada uma das fatias da paisagem para perceber ao certo qual é o seu destino. De vez em quando, terei de descansar, que isto de comer no meio de Estrelas também custa.
O primeiro poiso tem de ser no anfitrião que lá está, outra vez, de caldo na mão (desta vez de origem marítima), a terminar o seu camarão com algas. Há um ecrã luminoso que os anuncia a todos, mais o seu canapé – será possível usar este nome para todas as delícias que provei neste primeiro momento da festa?
Bem sei que estamos numa garagem, desculpem-me a insistência neste facto, mas lembro-me disso a toda a hora, quando olho para os tetos baixos, os pilares de betão, os lugares marcados no chão e os tubos metálicos espalhados por todo o lado. Há algumas mesas altas, tapadas com toalhas pretas, que me auxiliam enquanto tomo notas, seguro no copo de vinho (sempre nacional) e no prato. Entretanto, passam por mim uns cones de tártaro de atum que reconheço serem do “nosso” José Avillez. E isso leva-me até ele e ao momento mais alto da noite. O chefe estende-me uma colher com uma pedra em cima e pede-me que a coma. Obedeço, estou certa de que não me vou arrepender. E eis que, à primeria dentada, finalmente, algo explode na minha boca. Lá dentro, há fígado de bacalhau que se torna líquido e fresco, e que me deixa contente, especialmente quando se mistura com ovas de truta. Obrigada, Avillez. Assumo que pode parecer vulgar e óbvio, mas não deixo de me sussurrar: “Que pedra!”
Ao seu lado está o holandês Jacob-Jan Boerma, que durante a tarde mostrou ter muito para dizer acerca de Portugal, depois das suas mais de 20 viagens até cá. Dá-me a provar uma ostra cozinhada a 65 graus, durante dez minutos, em versão slow food. Pergunto-lhe de onde vem o molusco. É francês, gordo e saboroso, mas como ainda há duas horas havia estado a ver o pôr do Sol junto à ria Formosa, não me coíbo de exaltar os nossos exemplares deliciosos, que não precisam dos sabores asiáticos que ele acrescentou às suas ostras.
Adiante, com um rosé de Rio Maior, que se criou em cima de uma pedra de sal-gema, na mão. Haveria para descrever mais um fígado de frango exposto num tronco, uma sopa de abóbora com foie gras e outra série de coisas que a tornam especial, mas prefiro falar do rolo de salsicha do chefe inglês Matt Tebutt, com quem fiz as pazes depois de provar este amuse bouche. Perdoei-lhe a junção de salmonete com rabo de boi da noite anterior, muito por causa do sorriso constante que arrasta consigo e dos seus dentes afastados que lhe dão muita graça.
É agora que urge uma pausa. Respiremos juntos. Apanhemos ar. A prosa segue dentro de momentos.

Vasco Célio
SENTADOS COMO NUM CASAMENTO
De repente, abre-se uma porta, a banda, quase exclusivamente de sopro, chama-nos para a mesa, qual Flautista de Hamelin, com um exército de ratazanos atrás de si – sem desprimor para a multidão de 170 pessoas que neste caso seguiu os músicos.
Há uma lista para organizar as pessoas por mesas e cada um dirige-se à sua, sem dramas. A atmosfera faz lembrar um casamento, a meia luz, tudo impecavelmente branco e os holofotes dirigidos à cozinha improvisada – é de lá que hão de sair os quatro pratos da noite.
Cabe ao alemão Kevin Fehling, que descobri esta tarde não saber falar inglês, apesar de ter três Estrelas Michelin, arrancar com o jantar propriamente dito. E começou mesmo bem, com um elegante prato, composto por um carabineiro na textura exata, acompanhado de um mini taco com abacate. Cogito, de mim para mim, que a tendência da alta cozinha é mesmo cozinhar o menos possível os produtos, para manter a sua essência. Que boa ideia esta, que nos devolve os sabores.
Quando me trazem uma colher em vez da faca, adivinho que aí vêm os tortellini verdes (coloreados com clorofila) que vi serem preparados na cozinha do Gusto, quando lá estive para uma master class com o big chefe Heinz Beck, o mentor disto tudo.
Antes disso, a música volta a ganhar batida urbana. Anuncia a entrada de um dançarino, ao estilo breakdance, vestido de blazer laranja, luvas brancas, laço verde e chapéu preto. Vá, quero provar a massa do chefe Heinz. O que vale é que ele saiu rapidamente e o batalhão de empregados que ali estava para servir quase duas dezenas de pessoas chegou com um prato de sopa, com alguns tortellini inspirados numa receita da Toscânia, numa época em que a zona de Itália era bastante pobre. Nota dez para este prato italiano que se faz acompanhar de marisco.
Desculpem-me se aqui falha o vinho que faz o perfeito pairing com a ementa. O espaço no online pode ser infinito, mas não quero abusar. Abro exceção para o que o escansão Bruno Antunes escolheu para acompanhar o xerém de bacalhau e ameijôas, assinado por Avillez. Ao cair nos copos de balão, abri a boca de espanto. Pela cor, parecia conhaque, pelo cheiro, parecia conhaque. Oiço a explicação e faz sentido: este Remexido branco, do Algarve, é propositamente oxidado para se aguentar à bronca com a gordura da proposta do nosso único chefe duplamente estrelado.“A mineralidade e a frescura servem para limpar o palato depois do xerém.” Seja.
Seria um sacrilégio dizer que o melhor do prato são as duas azeitonas explosivas, um dos ex-libris de Avillez, mas confesso que lhes acho muita graça. A papa de milho e azeite também sabe bem, apesar de me deixar completamente sem fôlego para o pombo de Jacob-Jan Boerma, tri-estrelado.
Ainda bem que, pelo meio, entram três meninas meio-despidas, a dançar a conga. Param-se as máquinas para os chefes apreciarem o espetáculo, que ainda há tempo para retomar o trabalho. E assim foi. Primeiro veio o tinto intenso de 2009, para uma carne intensa. Depois chegou-me um prato muito bonito, que fui testando aos poucos, na tentativa de perceber o que acompanhava o pedaço tenríssimo de pombo – esta noite não houve cá chefes a falar das suas criações à mesa. Quem quisesse que olhasse para os ecrãs que mostravam em streaming o que se passava naquela cozinha apinhada de estrelas.

Vasco Célio
ORGIA DE AÇÚCAR
A banda regressa, alegre. E também se nota que as pessoas estão mais alegres, depois deste festival de comida e bebida de topo. Voltam também as três meninas e outros três meninos. Os clientes que pagaram 195 euros para jantar estão de pé, de smartphones em riste. Não admira: as meninas dançam com convicção, os meninos esforçam-se em manobras pelo chão. O último deles a intervir percorre uma distância considerável de pernas para o ar, em pino. Uma delas aventura-se numa esparregata. Duas posições da ginástica que me são bastante caras, mas isso agora não interessa para o caso, pois são private jokes e não vou expô-las aqui.
Tudo isto se passa para nos arrastar dali para fora. As sobremesas estão agora na sala ao lado, montada ao estilo discoteca: luz muito baixa, videoclips com imagens do tipo cabaret, estações de vinho do Porto, cafés, gins, vodkas e runs.
Poderia evitar esta expressão, mas não me ocorre outra mais adequada. O que se passou, de então para a frente, foi uma verdadeira orgia. Não quero com isto trazer a este texto qualquer conotação sexual, mas as sobremesas do chefe Eddie Benghanem são, no mínimo, pecaminosas, e eu diria mais: têm um pacto com o diabo. Normalmente consigo ignorar com facilidade esta etapa da refeição, especialmente quando as últimas horas foram passadas a comer bem, muito bem. Mas assim que avistei as estações repletas de doces lindos de morrer, não resisti. Não resisti uma vez, e mais outra – nem podem imaginar o que é uma tartelette de frutos vermelhos a piscar-nos o olho ou uma noz pecan caramelizada a passar mesmo ao nosso lado ou uma espécie de geladinho de pau, que na verdade esconde chocolate e bolo e sei lá mais o quê. Tudo isto ao som de uma cantora lírica. Não acham, no mínimo, irónico?
Quando o dj entra, outra vez, em cena, aproveito para me abanar ao som da música agitada, enquanto observo como os chefes, em modo de descanso, aproveitam apenas para beber e conversar. Na pista, nem vê-los. É pena, porque teria umas coisas para lhes dizer. E era tudo bom. Terá de ficar para a próxima.

Vasco Célio