Lá fora, o restaurante ainda se faz anunciar como um bristot (assim mesmo, com tê). E até a primeira página da ementa não se esqueceu de que essa era a sua definição quando o Cícero abriu portas em 2022.
Há pouco mais de um ano, quando cá estivemos a jantar, podemos atestar que era de facto o melhor embrulho para aquilo que aqui se servia, um híbrido de comida brasileira com toques franceses, em ambiente descontraído de galeria.
Mas não era só isso que queria Paulo Macedo, um dos proprietários, e por essa altura já ele teria ido jantar ao Nosso, em Paris, só com a ideia de trazer Alessandra Montagne – a primeira mulher brasileira a abrir um restaurante em nome próprio, na capital francesa – para o seu projeto em Campo de Ourique.
O “negócio” demorou quase um ano a efetivar e só agora a ementa com a assinatura da conceituada chefe está disponível para ser apreciada por quem gosta de criar memórias inesquecíveis à mesa.
Para se ficar com uma fotografia bem nítida do trabalho criativo de Alessandra, feito com base em produtos portugueses testados pelo Projeto Matéria, de João Rodrigues, mas com mão brasileira e técnica francesa, nada melhor do que nos atirarmos ao menu degustação (€95), que começa com um amuse-bouche bem carioca – dadinhos de tapioca, com maionese trufada e cogumelos Paris.
Desta miscelânea de influências resultam pratos difíceis de catalogar, pela sua originalidade. Se por um lado, temos duas pré-entradas que evidenciam ao que vem esta chefe – coxinha (era isso que começou por vender, no início da sua carreira), pão de queijo (com caviar) – a terceira, que chega à mesa num delicado pratinho de cerâmica, rasga com a evidência.
O patel de nata parece ser apenas uma gralha, pois a sua aparência é em tudo igual ao doce típico nacional, e até lhe põem um pozinho castanho por cima, como se fosse canela. Na realidade, trata-se de um recheio de couve-flor, com pó de couve-flor desidratada. “Amo este legume”, há de confessar Alessandra Montagne. E nós assinamos por baixo, a ponto de exclamarmos que, em nossa opinião, esta versão salgada supera a que é uma das mais fortes imagens de marca portuguesa. A chefe também contará que acordou um dia a pensar nesta receita e que se apressou a ligar a Ana Carolina – a chefe executiva, que está todos os dias na cozinha – que lhe deu imediato aval.
Passemos então para as entradas, que são arriscadas, por se centrarem, cada uma delas, em um só produto. A primeira trata-se de um mix de texturas de cenoura com lascas de bottarga, uma especialidade italiana feita com ovas de vários peixes secos. A segunda eleva os cogumelos a outra dimensão, servindo uma espécie de uma sopa com trigo sarraceno. Este prato, guloso, faz-se acompanhar por um brioche sem manteiga confecionado na casa, que se deixa comer com muita prontidão. Antes, viera um pão de fermentação lenta para banhar em excelente azeite do Douro.
A diversidade de hidratos continua pelos pratos principais adentro. O carabineiro, por exemplo, traz consigo um cremoso risotto de cevada com abóbora e à barriga de porco, cozinhada durante 17 horas para ficar na textura certa e obter crocância, junta-se um puré de aipo fumado e pedacinhos de beterraba. “Este foi o primeiro prato que criei para o meu Tempero [o outro restaurante parisiense]”, conta-nos Alessandra, meia nostálgica.
Pelo meio, a própria chefe sai de trás do balcão da cozinha que dá para sala em que estamos, de tabuleiro em riste onde estão uma série de shots de caldinho de feijão, um tira-gosto que nos faz viajar de um tirinho para o Brasil. A seguir, ainda provamos um bacalhau, pois está claro, com couve e arroz negro.
A equipa está de olhos postos na sala, para avaliar as nossas expressões de contentamento, que não há outras que possam surgir à medida que vamos avançando pelo menu. E quando espreitamos para dentro da cozinha, até custa a crer que deste micro espaço saiam criações tão bem empratadas e com uma delicadeza só permitida aos melhores.
Não será por acaso que Alessandra foi levada pelo decano Alain Ducasse para ser uma das chefes a abrir um restaurante no Museu do Louvre durante o próximo ano. Quem poderia imaginar que a brasileira que foi criada pela avó numa roça numa pequena aldeia de Minas Gerais, e que nunca sonhou em ser cozinheira, pudesse chegar, aos 47 anos, a um patamar tão elevado? O sorriso contagiante da brasileira revela como está realizada. “É um sacerdócio. Hoje, vivo, penso e faço cozinha.”
Em Paris, a chefe esteve um ano a estudar pastelaria e quase seguiu a via doce da culinária. Isso nota-se nas duas sobremesas com que remata este menu. Inspirada num dos quadros do pintor Cícero que está nas paredes deste restaurante com alma de galeria, serve-nos um prato em que o figo é rei, seguido de outro chamado de Variações de Limão com formas geométricas Cícero Dias, o artista que dá nome a este projeto arrojado.
No final da refeição, com regada com vinhos do Douro e Alentejo, quase achamos que nos perdemos e, por engano, entrámos noutro restaurante. Até o número de lugar diminuiu para metade e as loiças são atualmente de uma beleza única – ficámos a saber que foi Alessandra quem as trouxe de Paris, apenas porque desconhece aquilo que também se faz por cá nessa matéria. De bistrot não resta mais nada, podemos atestar. Aqui faz-se agora fine dinning à séria, quem sabe se até a piscar o olho a uma Estrela Michelin?
Cícero Bistrot > R. Saraiva de Carvalho, 171 > T. 96 691 3699 > dom-ter 19h-22h, qua-qui 19h-22h30, sex-sáb 19h-23h30 (almoços sob reserva)