Nos guias turísticos, a indicação de um passeio à Feira da Ladra é da praxe. Assim como ao Panteão Nacional e à Igreja de S. Vicente de Fora. Agora é preciso acrescentar um outro destino: o requalificado Mercado de Santa Clara.
Inaugurado em outubro de 1877, no Campo de Santa Clara, coração da freguesia de S. Vicente de Fora, é uma obra do arquiteto Emiliano Augusto Bettencourt e servia, na altura, como mercado abastecedor. Exemplar da arquitetura em ferro dos finais do século XIX, é o mercado coberto mais antigo de Lisboa.
Em pleno século XXI, fomos encontrá-lo renovado, depois das obras de requalificação levadas a cabo pela proprietária do edifício, a Câmara Municipal de Lisboa, e com uma nova vocação. Aqui já não se vendem víveres, porque às lojas que existiam anteriormente antes da remodelação e que se dedicavam ao comércio de antiguidades e velharias, juntaram-se, agora, espaços modernos com ateliês incorporados e produtos manufaturados, e uma associação com Estatuto de Utilidade Pública, a associação As Idades dos Sabores, que inclui o Centro de Artes Culinárias.
Dois lados de um mesmo mercado que, juntos, rumam a uma nova vida. Em suma, novos desafios, embora a ritmos diferentes.
Os novos rostos do mercado
É numa das laterais do edifício, onde o sol bate todas as manhãs, que encontramos os novos rostos do mercado. São jovens artistas e gente empreendedora que viu nele uma oportunidade para lançar o seu projeto pessoal. Chegaram aqui através dos concursos lançados pela autarquia lisboeta que, aos poucos, foi abrindo os novos espaços, lojas em bruto que cada um adaptou ao seu gosto e necessidade, sem nunca mexer na estrutura-base do edifício uma condição imposta pelo projeto.
Uma das primeiras a chegar ao mercado foi Isabel Tomás com a sua Amores de Tóquio, a loja com o número 19, que festeja dois anos em março. Esta jovem de 34 anos, estudou design de moda, fez fardas e vendeu em feiras e mercados de artesanato contemporâneo antes de se aventurar num espaço comercial próprio, que serve de loja e atelier. Os vestidos e malas são o seu cartão-de-visita: “Tento otimizar o visual através das cores e materiais, são peças caprichosas, cheias de detalhes.” Os tecidos que utiliza são maioritariamente importados, já que o design original das suas peças necessita de matéria que dificilmente encontra cá “Vem dos EUA e do Japão”, diz-nos.
Aliás, o nome da marca não é um mero acaso, Isabel bebe muita inspiração no Japão. No espaço colorido e cheio de personalidade, tal como a proprietária, vemos a outra “mercadoria”, há peças decorativas como almofadas, luminárias e mobiliário reciclado, vestuário para criança e acessórios, e ainda peças vintage e em 2.ª mão. Quando questionada sobre se há ou não clientes para esses produtos, responde: “Às terças e sábados, durante a Feira da Ladra, é quando há mais visitantes. Nos outros dias nem tanto.” Parece que, para estes lados, ainda não foi criada uma “paragem obrigatória” no renovado mercado, e tanto Isabel como os seus vizinhos anseiam pela chegada de novas visitas.

"São peças caprichosas, cheias de detalhe" conta a responsável pela Amores de Tóquio
Marcos Borga
É o caso de Leonel de Jesus e a sua Portugal Modernista (loja 20): “O sítio é excelente, o mercado está renovado e a zona está a ser revalorizada com a abertura de novos estabelecimentos, falta é informação e sinalização sobre este novo polo de Santa Clara!” Aberta desde junho do ano passado, a Portugal Modernista surgiu depois de uma viagem de Leonel à cidade de Praga, onde diz ter tido uma overdose de Kafka. Eles vendem Kafka, a Portugal Modernista vende peças com ícones nacionais, como Amadeo de Souza-Cardoso, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, os azulejos e a calçada portuguesa.
Há T-shirts, canecas, lápis, postais, pins, puzzles, blocos de notas e azulejos, tudo sob um conceito do movimento modernista e com design made in Portugal, um dos pontos comuns entre estes novos espaços.
Aliás, a designação da Amasso Cerâmica de autor, uma das lojas vizinhas, diz isso mesmo. A autora é Sara Guerreiro, 38 anos, arquiteta de formação que virou ceramista e cujas mãos dão agora vida a materiais como a porcelana, a matéria que hoje em dia mais gozo lhe dá trabalhar. Aberta desde junho de 2011, ocupa o número 21 e é, como nos diz, “uma montra da cerâmica contemporânea portuguesa”. A loja da Sara espelha um dos requisitos pedidos pela câmara na abertura nos concursos, que tivesse um espaço de trabalho onde os artistas pudessem ser vistos a exercer a sua arte.
Na Amasso, a bancada com os materiais e utensílios são prova disso. Refere, no entanto, que “em dia de feira é mais complicado trabalhar, porque o corrupio é maior”.
À venda, além dos seus trabalhos, também existem criações de mais 6 ceramistas: Teresa Abrantes, Martim Santa Rita, Tosca Lab, Fernando Sarmento, Stafania Barale e Isabel Carvalho. Os preços são acessíveis, a partir de €15 já pode adquirir uma peça de autor e única.
O mesmo se passa na Cyan joalharia contemporânea, propriedade da jovem Maria Ana Rincon Peres, de 32 anos. Psicóloga de formação, trabalhou na área da produção como freelance e só posteriormente, depois do curso tirado na Ar.Co, se tornou joalheira, tardiamente como ela própria diz. Na loja, vestida a cinza e com muita área de trabalho, é possível observá-la a limar ou a soldar as suas criações. Os seis anos de experiência permitem-lhe dar formação aos interessados nesta área, e se quer tornar-se um deles basta entrar em contacto através do Facebook ou do site.
A informação sobre esta e outras atividades que decorrem nestes novos espaços na Amores de Tóquio há workshops de origami, crochet e costura até agora não têm chegado a muita gente, a divulgação é feita através dos sites e blogues destes artistas. “É uma zona giríssima, um lugar que eu acho fantástico, mas era preciso dinamizar mais”, diz Isabel Boavida, 52 anos, proprietária da loja Artes do Fogo.

Pouco movimento é compensado pelas terças e sábados, dias da vizinha Feira da Ladra
Marcos Borga
Formada pela Escola de Artes Decorativas António Arroio, dedica-se à cerâmica há já vários anos, tendo chegado ao mercado em novembro de 2011, foi das últimas a chegar. Vê-la trabalhar in loco, na intrincada malha que desenha nas suas peças dá a real perceção do seu trabalho.
Entre os espaços novos, existem mais dois a merecer a tal visita: ficam no topo do edifício de frente para o Jardim Boto Machado, em comum têm a culinária.
As Marias com Chocolate é a loja mais doce e é fruto do trabalho e empenho do casal Maria do Carmo Vasconcelos e Pedro Duarte, dois jovens de 32 e 31 anos respetivamente, que ganharam um gosto especial pelo chocolate durante a sua formação na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Aberta há cerca de um ano e meio, tem deliciado os vizinhos e clientes com os seus bombons artesanais (€0,70/ unidade, €60/kg) (pralinés, trufas de ginja, de Bailey’s e de vinho do Porto, de caramelo, menta, capuccino ou piripíri). Mas há mais: chocolate quente (€2,20), fudges, barras de caramelo e chocolate, cookies de aveia e chocolate, nogates de amêndoa, de coco e noz e bolo húmido de chocolate. Acompanhe com batidos de fruta (€2,30) ou sumos naturais (€2).
Na porta ao lado, no coração do mercado, fica o Centro de Artes Culinárias. A abertura oficial aconteceu a 16 de setembro de 2011, mas deram-se a conhecer no mês de junho, pelas Festas de Lisboa, com a exposição Alfacinhas. À frente deste projeto está Maria Proença, 72 anos, fundadora de As Idades dos Sabores – Associação para o Estudo e Promoção das Artes Culinárias e pessoa de créditos reconhecidos na área da culinária teve uma coluna de culinária na revista Marie Claire e foi responsável pelo programa Saber Fazer na RTP 2.
Ainda sem espaço próprio, a associação, nascida há 11 anos, foi desenvolvendo as suas atividades de forma avulsa pelo País. Em 2011 foi-lhes reconhecido o estatuto de Utilidade Pública, e é então que surge a oportunidade de celebrar um protocolo com a câmara, que lhes permitiu instalarem-se por um período de cinco anos no mercado. O centro está dividido em 3 núcleos que se articulam entre si, área expositiva, espaço com cozinha (onde se desenvolvem diversas atividades internas ou para terceiros) e uma zona de loja onde se encontram à venda diversos produtos alimentares de produção nacional.
Dispondo de um acervo com cerca de 4 mil itens, entre objetos e documentos, que herdou de Maria Proença, o centro pode agora, em ambiente próprio, expor as curiosidades que detém esta coleção e abordar de forma transversal e rica em conteúdos a história da culinária e tudo o que com esta está relacionado. Os frutos deste projeto colhem-se em exposições como a que está a ter lugar, Errâncias no Laranjal (patente até 18 de março), e que nos conta um pouco da história e transformações vividas por este citrino.
Um mercado, duas velocidades
Se é verdade que as caras novas trouxeram design e modernidade a um dos lados deste mercado, também é verdade que os rostos de outros tempos, e reconhecidos pelos clientes de há muito, aqui se mantêm no ramo de compra e venda de antiguidades e colecionismo, ou até mesmo nos espaços de restauração.
Noémia dos Santos, 74 anos, é uma delas. Proprietária da loja Ianuarius, foi ela quem abriu o caminho aos demais proprietários das lojas deste ramo. “Na altura, na câmara diziam que não ficava bem uma loja de antiguidades no mercado, mas eu nunca desisti”, conta-nos.
Começou na loja número 9, agora ocupa a número 17 e 18. Não tem empregados, facto comum a todos os estabelecimentos, e gere o seu tempo entre a estada na loja e a visita a clientes onde adquire as peças que aqui vende, lustres, mobiliário, fotografias antigas, entre outras.
Na porta ao lado, encontramos a Antiques do Mundo, de Carlos Janeiro e Laura Medeiros, um casal desde sempre ligado ao ramo das antiguidades, aberta há 26 anos como antiquário, com uma clientela fiel e muito próxima. As suas portas estão sempre abertas, ao contrário de outros espaços desta velha guarda, duas velocidades bem visíveis para quem visita o mercado nos dias não coincidentes com a Feira da Ladra (terças e sábados), por enquanto os dias fortes deste mercado.

As novas lojas não tiram espaço à tradição: antiguidades, como as da loja de José Marcelo, resistem ao tempo e à mudança
Marcos Borga
Ainda nas antiguidades, com loja aberta há cinco anos, está José Marcelo, da World Antiguidades, vende arte sacra, Companhia das Índias, faianças portuguesas, tecidos antigos, pratas, mobiliário português e estrangeiro e lustres. Por esta altura terá algumas das suas peças numa feira de antiguidades que se realiza em Avignon, França. É comum encontrá-lo nas feiras de antiguidades nacionais como a do Convento do Beato e a da FIL. Quando lhe perguntamos pelo negócio diz-nos que os clientes habituais vão aparecendo, o que acontece é que, se calhar, “o que vendia por 1 500 euros agora vendo por 1 200”.
Quanto à dinâmica do mercado e o rumo escolhido para este… terminamos com a sua opinião: “Esta é uma boa ideia, mas um centro de antiguidades teria sido melhor.”