Os cardiologistas têm uma máxima fundamental: “Tempo é músculo.” O coordenador do Centro de Estudos Cardiovasculares do Hospital de Santa Cruz, em Oeiras, Rui Campante Teles, não deixa, por isso, de sublinhar a importância de intervir o mais rapidamente possível junto dos seus doentes. Quanto mais tempo passa, maior é a probabilidade de o músculo cardíaco sofrer danos irreversíveis, por exemplo, em caso de enfarte do miocárdio.
A pandemia, no seu entender, veio agravar o que já era evidente: “O limite [na cardiologia] já foi atingido há muito tempo”.
Atualmente, “todos os serviços estão amputados pela Covid-19” e, com a segunda vaga a provocar o aumento dos internamentos – esta segunda-feira estavam hospitalizadas 1 912 pessoas (240 em cuidados intensivos) com Covid-19 – “ainda mais diminuídos ficaremos”, teme o cardiologista.
Rui Campante Teles reconhece a obrigação de abrir mais camas para os doentes infetados com o SARS-CoV-2, mas destaca a importância de o fazer apenas quando se justifique. “É preciso flexibilidade para não haver camas vazias durante meses à espera dos doentes com Covid-19”, nota.
No início do confinamento, foi evidente que muitas pessoas evitaram dirigir-se aos serviços de saúde por terem medo de serem contaminadas com o coronavírus. “Nas primeiras duas ou três semanas, registámos quebras na ordem dos 40 ou 50% na ativação da via verde coronária”, o serviço que encaminha os doentes para os hospitais mais bem preparados para receberem os doentes cardíacos.
É preciso flexibilidade para não haver camas vazias durante meses à espera dos doentes com Covid-19
RUI CAMPANTE tELES, CARDIOLOGISTA DE INTERVENÇÃO
“As pessoas em vez de ligarem na primeira hora dos sintomas, deixavam passar três ou quatro, o que tem um grande impacto, porque a mortalidade cresce a cada hora que passa”, alerta Rui Campante Teles. Em caso de enfarte do miocárdio, a probabilidade de o doente morrer pode aumentar 50% por hora.
Alguns doentes não chegaram aos hospitais porque nunca chamaram o INEM ou chamaram demasiado tarde. Na gíria dos cardiologistas fala-se, por isso, das “duas horas de ouro”, que permitem intervir com a garantia de um melhor prognóstico de recuperação.
Rui Campante Teles teme que só depois de a pandemia acalmar, “com a chegada da vacina”, se tenha “noção dos doentes perdidos”. Alguns serão tratados já em fases avançadas das suas doenças, com piores prognósticos, outros “já não estarão cá para contar a sua história”.
Recuperar o atraso
Se problemas cardíacos como a angina de peito podem sem controlados através de uma dieta equilibrada, exercício físico regular e o cumprimento rigoroso da medicação, outras patologias, como a estenose aórtica (perturbação do fluxo do sangue entre o ventrículo esquerdo e a artéria aorta), exigem uma intervenção que não pode ser indefinidamente adiada, neste caso, para a substituição da válvula.
Porém, quando estas intervenções foram retomadas, em maio, ao fim de cerca de dois meses de paragem por causa da pandemia, houve alguns doentes que se recusaram a ir ao hospital por medo de serem infetados com o novo coronavírus. “Quando os voltámos a chamar, em junho ou julho, alguns deles já não estavam connosco”, lamenta o cardiologista, antes de especificar que se cruzou com dois ou três casos destes.
Houve alguns doentes que se recusaram a ir ao hospital por medo de serem infetados com o novo coronavírus
Atualmente, Rui Campante Teles sente que “houve uma confiança que foi recuperada”, os doentes já estão conscientes de que existem áreas separadas para doentes com Covid-19 e sem Covid-19, o que diminuiu o seu receio de se dirigirem aos hospitais.
No entanto, os médicos continuam a estar menos acessíveis aos pacientes, até porque “nem todas as consultas são presenciais”, o que tem um especial impacto nos idosos, habitualmente menos hábeis a lidarem com as novas tecnologias.
Além da maior demora de todos os procedimentos devido às atuais medidas de prevenção do contágio pelo SARS-CoV-2 e de existirem menos camas disponíveis nos vários serviços, uma vez que uma parte delas está alocada à Covid-19, também a realização de menos exames complementares compromete os diagnósticos. “Se uma pessoa quiser marcar uma ecografia cardíaca, há uma lista de espera e irá perder algum tempo”, exemplifica.
Luta contra o tempo
Rui Campante Teles defende a criação de um programa nacional de recuperação de todos os procedimentos adiados, como consultas, exames e cirurgias. “Se essa organização existe, eu não percebo qual é”, admite.
À “falta crónica” de profissionais no SNS, essenciais para resolver o problema, o cardiologista soma a importância de libertar os médicos de tarefas que não são prioritárias como “preencher requisições em frente ao computador”.
Se as pessoas recorrem menos aos serviços de saúde, se se tratam menos doentes e mais tarde, será inevitável que “algumas acabem por falecer”, o que poderá contribuir para que a mortalidade continue a aumentar em Portugal, à semelhança do que aconteceu nos últimos meses. Entre março e outubro deste ano, morreram 5 456 pessoas acima da média dos últimos cinco anos.
O cardiologista não se cansa de repetir o quão vital é as pessoas agirem rapidamente. Se sentirem falta de ar, uma dor súbita no peito, que pode irradiar para o queixo ou para os braços, suores, náuseas e vómitos, devem ligar imediatamente para o INEM. “Há quem pegue no carro para ir ao hospital, o que é um risco enorme porque pode perder a consciência durante o percurso”, alerta.
Quanto à confusão dos sintomas de enfarte com os de um ataque de pânico, Rui Campante Teles revelou que não é possível distingui-los sem a realização de exames médicos.
“Todos os dias chegam pessoas ao hospital que acham que estão a ter um enfarte, mas não estão. A ansiedade pode confundir porque também causa desconforto no peito”, relata. Na dúvida, “prefiro que os doentes venham”, aconselha.
Todos os dias chegam pessoas ao hospital que acham que estão a ter um enfarte, mas não estão. A ansiedade pode confundir porque também causa desconforto no peito
rui campante teles, cardiologista de intervenção
Ao chamarem o INEM, as pessoas são habitualmente submetidas a um eletrocardiograma, que desfaz todas as dúvidas, antes de serem levadas para o hospital.
Ao mesmo tempo, a ansiedade e a depressão também contribuem para as doenças cardíacas, que podem estar a ser agravadas pelo isolamento provocado pela pandemia, por exemplo, junto dos mais idosos, mas também devido aos problemas provocados pela crise económico-social, como o aumento do desemprego.
Rui Campente Teles apelou às pessoas para não deixarem de aceder aos cuidados de saúde e para confiarem nas instituições. Lembrou, também, que a esmagadora maioria dos infetados com o SARS-CoV-2 tem doença ligeira.
Manter uma dieta equilibrada, apostando em legumes e frutas e diminuindo os hidratos de carbono, os açucares e o sal – especialmente no caso dos hipertensos – e fazer meia hora de exercício três vezes por semana, além de respeitar a eventual medicação prescrita são os seus conselhos para sobreviver melhor à pandemia.
Sinais de alarme
O enfarte do miocárdio é uma das principais causas de morte em Portugal. Saiba quais os sintomas que não deve ignorar, mesmo em tempo de pandemia
Dor torácica
Além da dor, também pode provocar uma sensação de pressão ou de aperto no peito, com grande intensidade e duração superior a meia hora
Irradiação da dor
É habitual a dor estender-se aos membros superiores (em particular ao braço esquerdo), ombros, costas, pescoço, maxilar inferior e mesmo ao estômago
Mal-estar geral
Estes sintomas surgem, muitas vezes, acompanhados de suores frios, náuseas e vómitos, falta de ar, tonturas, desmaios, fraqueza, arritmias e sensação de pânico
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