Primeiro, senti-me comovida ao recordar a minha mãe, ao lado da minha cama de hospital, a dar-me um pão com fiambre. Mais tarde, lembrei-me da excitação de me esconder dos médicos na ronda matinal, a acreditar com todo o meu coração que eles não me viam. Duas memórias da minha hospitalização, aos 4 ou 5 anos, regressaram quando, no passado mês de julho, estive vários dias internada, exatamente no mesmo hospital. Aos 48 anos, voltei a perceber a maravilha de ser criança, porque agora não posso fugir aos médicos, nem fantasiando.
São poucas as memórias que temos da nossa infância. Afinal, “até aos 2 anos, o hipocampo ainda não está maturado para podermos recordar no futuro. Até aos 5 anos, a nossa linguagem não está bem desenvolvida e, enquanto adultos, para recordarmos, pedem-nos para usarmos um código linguístico”, explica Pedro Albuquerque, professor no departamento de Psicologia Básica da Escola de Psicologia da Universidade do Minho. “Às vezes, digo aos meus alunos que, até aos 5 anos, as memórias são guardadas em gavetas com cores: episódios azuis, amarelos, vermelhos…”, acrescenta.
Estas lembranças serão apenas histórias contadas pelos meus pais? Seja como for, passaram a fazer parte de mim. “É raro recordarmo-nos de algo que tenha ocorrido antes dos 3 – 4 anos. A partir daqui, começamos a reter memórias (consciente e inconscientemente, memória explícita e implícita) que vão estruturando a nossa forma de ver o mundo e de nos comportarmos nele. A personalidade vai-se estruturando naquilo que vamos experienciando e retendo dessas experiências”, explica Diogo Telles Correia, médico psiquiatra, psicoterapeuta, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) e diretor da Clínica Universitária de Psiquiatria e Psicologia Médica da FMUL.
“A linguagem não é apenas uma forma de comunicação (e expressão), mas também uma forma de representarmos o mundo na nossa mente. Deste modo, é possível que a linguagem esteja implicada no processo de retenção da memória, mas também no processo de evocação desta memória”, acrescenta Diogo Telles.
As recordações mais antigas, muitas vezes, acabam por vir à superfície, ativadas por um odor ou um som e não por uma palavra. Precisamos do estímulo certo para lembrar. É isso que explica Pedro Albuquerque: “A melhor pista para recordar hoje um episódio é aquela que eu usei quando processei esse episódio. Se associei uma memória a uma música, quando ouvir a música, é mais provável que essa memória seja recordada.” Inserida naquele ambiente hospitalar, talvez tenha encontrado não uma, mas muitas pistas nos cheiros, ritmo e sons.
Criar e reter memórias
Como se formaram e conservaram aquelas lembranças ao longo de tanto tempo? Os especialistas decifram: a memória existe em diferentes formatos (ver caixa “Os vários tipos de memória”) e a sua geração depende de três mecanismos: codificação, retenção e recuperação. “O processo de codificação ou de aquisição corresponde ao momento em que nos confrontamos com o episódio. Se der mais atenção à informação, é mais provável que mais tarde a recorde”, constata Pedro Albuquerque.
Também é preciso reter esses dados usando dois elementos fundamentais. Em primeiro lugar, guardamos melhor aquilo que faz mais sentido para nós. Pedro Albuquerque recorre à metáfora da biblioteca para clarificar: “Se coloco a informação numa estante que conheço, quando precisar dela vou exatamente ao local onde está a informação. A consolidação ocorre na retenção – é a transformação das memórias que estão num estado volátil, não solidificadas.”
Outro elemento crucial é a qualidade do sono. “O sono tem uma série de ciclos REM e não REM, que produzem uma proteína associada a neurotransmissores que ajudam à consolidação das memórias processadas durante o dia”, constata Pedro Albuquerque. “Para se consolidarem, as memórias têm de seguir mecanismos neurobioquímicos, passando de um processamento no hipocampo para um processamento cortical [no córtex cerebral]”, acrescenta.
Existe ainda o momento da reconsolidação das memórias. Quando voltamos a relatar um evento passado, a memória regressa a um estado de fragilidade, de volatilidade, antes de ser novamente consolidada. Segundo Pedro Albuquerque, “isto tem vantagens e problemas. A memória pode ser mudada. A reconsolidação pode levar a novos dados, novas informações, algumas verdadeiras, outras falsas”.
Do Minho para a polícia de Los Angeles
A polícia de Los Angeles, nos Estados Unidos da América, começou a utilizar, na formação dos seus detetives, uma técnica de entrevista a testemunhas de crimes desenvolvida na Universidade do Minho (UM). “É uma entrevista cognitiva para ajudar testemunhas cooperantes a recordar mais detalhes”, conta Pedro Albuquerque, professor no departamento de Psicologia Básica da Escola de Psicologia. “Desenvolvemos a técnica de recordação por categorias, ou seja, se se relatar primeiro tudo sobre as pessoas, depois tudo sobre o local e, a seguir, tudo sobre os objetos, etc., aparecem mais detalhes”, acrescenta. A investigação foi desenvolvida durante a tese de doutoramento do seu aluno Rui M. Paulo. Esta é uma das muitas estratégias que as polícias, um pouco por todo o mundo, adotam para recolher dados fidedignos. Afinal, se as testemunhas cooperantes não fizerem de imediato o seu relato, podem estar sujeitas à informação, correta ou errada, que surge nos média ou numa conversa de café. “Por vezes, a memória altera-se com traços que julgamos associados ao episódio inicial, mas que, na verdade, são o conjunto de informação que vamos absorvendo. Criam-se memórias falsas”, explica o investigador.
Por isso, algumas polícias, como a inglesa, quando estão perante dezenas de testemunhas para entrevistar e têm pouco tempo e recursos, “entregam um caderninho em que as pessoas fazem um relato escrito do que viram. Isto permite que a testemunha esteja menos sujeita à desinformação”, refere Pedro Albuquerque. Outras estratégias são utilizadas, por exemplo, na parada de identificação de suspeitos, de modo a reduzir a condenação de inocentes. Se dissermos à testemunha que “o suspeito pode não estar presente, a pessoa precisa de muito mais informação para decidir e, assim, diminui drasticamente a quantidade de falsos positivos”, alerta o professor.
Amor, raiva, medo, alegria e tantas outras emoções têm um papel na criação de recordações. Uma relação íntima que também começa no processamento cerebral: o hipocampo (a estrutura inicial da memória) e o córtex (a região onde, entre outras funções, processamos as memórias de longo prazo) também são utilizados pelo sistema límbico, responsável pelas emoções.
O maior ou menor vigor das emoções faz com que o processo de codificação, retenção e recuperação seja mais ou menos eficiente. “A retenção de situações que ocorreram na presença de emoções mais intensas (agradáveis, por exemplo) poderá, nalguns casos, estar aumentada. No entanto, em determinadas situações extremas (emoções geralmente mais desagradáveis), pode ocorrer o contrário: períodos de amnésia. Este último caso acontece, por vezes, em situações-limite (cenários de guerra, violação, etc.), e pode inclusive ter um papel aparentemente protetor”, afirma o psiquiatra Diogo Telles.
Esta ligação entre emoção e memória revela-se de outras formas, mas especialmente na capacidade de recordação de detalhes. “A raiva é muito ativadora da memória e a tristeza é desativadora. Quando as emoções são muito ativadoras, recordamos os detalhes centrais e esquecemos os detalhes periféricos. É como se passasse a usar palas; processo apenas uma parte e o resto fica mais diluído”, relata Pedro Albuquerque.
Memórias têm presente e futuro
É a esta base de dados feita de experiências passadas e de emoções que vamos buscar a informação necessária para gerir situações presentes e criar cenários para pensar o futuro. Isto permite, por exemplo, que uma pessoa com medo de fazer um discurso reconheça outros episódios passados e comece a antecipar ou a preparar-se para reduzir a ansiedade.
“Tudo na vida/Se faz por recordações”, antecipou Alberto Caeiro. E, como constatam os especialistas da área, estes episódios que guardámos ao longo dos anos ajudam-nos a ficar com uma ideia de nós próprios. O melhor exemplo disso são as recordações dos mais idosos. “As pessoas com 70 e 80 anos recuperam melhor episódios entre os 18 e os 30 anos”, atesta Pedro Albuquerque. Nesse período, há eventos importantes, muitos deles que acontecem pela primeira vez. No entanto, acrescenta, “é justamente nesse momento que a nossa personalidade se define. Aquilo que sou aos 70 anos (pai, com uma profissão, etc.) dependeu, em grande parte, daquilo que vivi entre os 18 e os 30. Quando estamos a recuperar memórias nossas, a pista que temos para as recuperar é a autorreferência, é o próprio”.
Diogo Telles clarifica a importância da memória no nosso quotidiano: “Os nossos comportamentos e atitudes no presente resultam sempre da evocação das memórias passadas. Nós somos um conjunto de memórias (conscientes e inconscientes), e são elas que conduzem e orientam todas as nossas escolhas e que determinam o nosso futuro.” Aliás, acrescenta, “é normal que tudo o que podemos projetar para o futuro tenha que ver com aquilo que retivemos do passado, com as experiências vividas e assistidas e de modificações que fazemos sobre o material que temos apreendido”.
Podemos esquecer?
O esquecimento ocorre de forma orgânica, quando há “uma lesão/ alteração visível no cérebro, por exemplo. Este pode ser o caso da demência”, explica Diogo Telles. Nos outros tipos de amnésias, “não é visível nenhuma alteração estrutural; ocorrem em situações psiquiátricas. O diagnóstico destas situações é complexo, embora a amnésia psicogénica costume ser seletiva (apenas para determinados acontecimentos que tenham uma importância específica)”.
Mais do que esquecer, para funcionarmos no quotidiano, temos de inibir memórias. Isto porque, segundo Pedro Albuquerque, “a memória é ilimitada e, provavelmente, até ao último dia das nossas vidas estaremos a processar informação”. Para se recordar algo, acrescenta, “não podem vir à memória todos os episódios relacionados com o tema”. Por essa razão, quando enfrentamos episódios traumáticos, podemos tentar esquecer. Como observa este especialista, “não significa que se esqueça realmente; o nível de ativação destas memórias vai diminuindo e em qualquer altura um episódio qualquer pode reavivá-las”.
Em situações extremas, estas memórias reprimidas podem estar ligadas a mecanismos dissociativos. “A situação é tão violenta do ponto de vista psicológico e físico que a única forma que a pessoa tem de lidar com isso é criando um ambiente que a dissocia daquele evento”, explica Pedro Albuquerque, usando como exemplo o filme A Vida é Bela, de Roberto Benigni. “O pai está com o filho no campo de concentração e transforma tudo num jogo… tem de se esconder para não ser apanhado… Uma estratégia para que o sofrimento seja, de alguma forma, diminuído”, elucida.
As minhas memórias de internamento em criança, longe de estarem reprimidas, estavam apenas escondidas, à espera do estímulo certo para me darem conforto.
Os vários tipos de memória
Para se compreender melhor a memória, é importante conhecer os diferentes tipos em que se divide. Nesse sentido, o médico psiquiatra Diogo Telles vai beber diretamente ao manual de psicopatologia que escreveu, no qual explica que “a memória permite a capacidade de fixar, conservar e rememorar informação, experiências e factos”:
► Imediata: com a duração de segundos;
► Curto prazo ou de trabalho: dura segundos a minutos;
► Remota ou a longo prazo: prolonga-se desde minutos a décadas.
Consoante as modalidades cognitivas, poderá também falar-se de memória:
► Explícita ou declarativa: centra-se habitualmente em factos e acontecimentos, e o próprio está consciente da utilização da memória;
► Semântica: não existe referência ao tempo ou ao espaço (situações de conhecimento geral, mais teóricas, por exemplo, “o mundo é redondo”);
► Episódica, biográfica ou histórica: referente a experiências do próprio (por exemplo, “hoje à tarde, comi uma sanduíche”). A memória autobiográfica corresponde a eventos da vida;
► Implícita ou de procedimento: as memórias são obtidas automaticamente e utilizadas de forma inconsciente (por exemplo, conduzir, andar de bicicleta). Refere-se a hábitos e capacidades motoras, sensoriais ou eventualmente linguísticas;
► Memória de procedimentos: competências motoras (“o saber-fazer”);
► Memória percetiva ou priming: permite identificar, por exemplo, formas e reconhecer imagens vistas anteriormente;
► Memória de condicionamento (associativa): aprendizagem através dos processos de condicionamento;
► Memória não associativa: envolvida no desenvolvimento de reflexos, habituação e sensibilização.