Florbela Batalha tem 56 anos. Um ar calmíssimo, apaziguado. Como muitos doentes de fibromialgia, perde a conta aos anos durante os quais sentiu os sintomas da doença. Não lhes dava importância, associava as dores ao excesso de trabalho. “Era funcionária pública com algumas responsabilidades, trabalhava muitas horas…”, explica. Para o cansaço extremo tinha sempre uma desculpa, aquilo que tinha feito a semana passada, o que fizera há um mês.
“Até que houve um dia em que acordei de manhã e não me conseguia mexer, não conseguia sequer pôr os pés no chão, tinha dores dilacerantes. Desde esse momento até ao diagnóstico de fibromialgia decorreram 10 meses. Fui a médicos de todas as áreas”, conta. Primeiro, o hospital onde lhe tiraram as dores imediatas. Depois, o médico de família. Seguiram-se os exames, as análises, TAC, tudo negativo.
“Continuei a trabalhar. Sou muito exigente, sou aquela pessoa que vê todos os pormenores – é o controlo da situação, o precisar de me sentir segura. Mas o cansaço era extremo”, continua Florbela que, quando finalmente recebeu o diagnóstico de fibromialgia, sentiu o “mundo desabar”. “Como é que, no trabalho, onde precisam de mim, eu vou conseguir corresponder segundo o meu modelo de exigência? Resignei ao cargo de chefia e comecei a cuidar de mim.”
Foi através do site MyFibromialgia que conheceu José António Pereira da Silva, 65 anos, médico e professor de Reumatologia da Universidade de Coimbra, que é um dos autores do estudo Emotion regulation and the salience network: a hypothetical integrative model of fibromyalgia, junto com investigadores em psicologia, como Ana Margarida Pinto, ou noutras áreas, como o neuropediatra Filipe Palavra.
“Fizemos uma pesquisa muitíssimo detalhada de toda a evidência científica e validámos e refinámos os nossos conceitos com o auxílio de uma rede internacional de investigadores destacados nesta área, incluindo psicólogos, reumatologistas e investigadores de neurofisiologia. Fomos expondo os conceitos à crítica interpares e chegámos a um modelo para a interpretação desta doença – chamamos-lhe o modelo FITSS (Fibromyalgia Inbalance of Threat and Soothing Systems), que está publicado numa revista de grande impacto internacional [Nature Reviews Rheumatology]. Este conceito continuará exposto à crítica interpares, inspirando mais investigação e uma forma nova de abordar estes doentes por parte dos clínicos, baseada na compreensão holística da pessoa”, explica Pereira da Silva.
Permanente ameaça
A tese do médico, retirada da sua prática clínica, era que a “fibromialgia tem uma relação muito forte com o bem-estar emocional ou a falta dele.” E explica: “Na generalidade, os doentes reconhecem que passam bem pior quando estão mais tensos, angustiados ou tristes, e, pelo contrário, sentem francas melhoras em alturas mais felizes e tranquilas de vida. Ora, as pessoas com fibromialgia têm, em regra, um predomínio de emoções negativas, uma característica de personalidade que precede os sintomas da doença.”
Além da dor, por vezes excruciante, os doentes, diz o médico, são mais sensíveis ao frio, aos ruídos, aos odores, “tendem a sentir nos acontecimentos correntes uma tonalidade mais negativa, uma carga de ‘ameaça’”. Ora, “tudo o que percebemos como ameaça é gerido pela salience network, uma entidade do sistema nervoso central que funciona como a nossa central de alarme. Este sistema neuronal serve o objetivo nuclear da sobrevivência: identifica qualquer sinal de ameaça e põe em curso uma resposta imediata, que pode envolver todo o corpo”.
Para José António Pereira da Silva, os doentes com fibromialgia terão “uma perceção acentuada de ameaça e de risco que mantém a central de alarme em atividade permanente, e daqui resulta a amplificação da dor, dos cheiros, dos ruídos e demais estímulos. Toda a vida é afetada por este viés negativo, resultando na emergência e na manutenção dos sintomas da doença, quer de ordem psicológica quer de ordem física”.
Poderá dar-se o caso de ser a própria doença a pintar tudo de negro, a dar o “viés negativo” que se atribui a estes doentes? ”A esmagadora maioria reconhece que já tinha estes traços de personalidade muito antes de ter dores, desde a infância, em muitos casos. É, naturalmente, compreensível que sofrer dores e cansaço permanentes causa tensão psicológica. A nossa proposta é que o inverso é igualmente verdadeiro.
Que não haja a mínima sombra de dúvida de que a dor e o cansaço extremo sentidos pelos doentes é bem real. As ressonâncias magnéticas mostram isso mesmo. “Vê-se que as áreas que modulam a dor estão, de facto, hiperativas. Há estudos muito claros que demonstram que o doente sente efetivamente a dor que descreve sentir: isso é indesmentível. Contudo, estes achados não têm ainda uma definição suficiente para constituir prova da doença”, acrescenta o reumatologista.
“Eu não tinha um penso na testa, eu não tinha um gesso no braço, como é que as pessoas iam compreender?”, questiona Florbela. “É como quem tem uma depressão. O que é que a pessoa tem? Não se vê nada! Como é que se explica a dor?”
Para Florbela, era no local de trabalho que a situação se agudizava. Valeu-lhe a pandemia que a obrigou a um “recato” e a ter tempo para si própria. Mas, ainda não conformada com o diagnóstico, a funcionária pública consultou outra reumatologista, que a aconselhou a eliminar os fatores de stresse da sua vida e a fazer uma atividade relaxante como ioga ou meditação.
Foi o início da aceitação da doença, como conta Florbela. “Com o ioga, os meus músculos deixaram de estar tão contraídos, porque havia uma grande rigidez corporal, estava sempre em tensão. Também comecei a fazer meditação e dediquei-me a responder a duas questões: quem é a Florbela Batalha e o que é que a faz feliz”, revela-nos.
Durante os três anos em que entrou dentro da sua “caverna”, como lhe chama, e viu muita coisa (“o que gosto e o que não gosto”), sentiu que andou a largar pesos, fossem do presente fossem do passado. E andou à procura dos “sapatos” que lhe serviam.
São vivíssimas as metáforas de Florbela. “Tudo o que a alma não expressa, o corpo imprime. Tudo o que eu tinha feito não estava de acordo com a minha verdade e os sapatos apertavam, davam-me calos, provocavam-me doenças.”
A questão do estigma
Relaxantes musculares e moduladores do humor são algumas das terapêuticas usuais dadas aos doentes com fibromialgia. Tratam-se os sintomas, pois as causas da doença permanecem um mistério. As conclusões do estudo de que temos falado provocaram polémica.
“Por um lado, pela dificuldade em abandonar os conceitos prévios que essencialmente excluíam as óbvias dimensões psicossociais da fibromialgia. Por outro, há quem tema que, ao destacar a importância destas dimensões, possamos aumentar o estigma dos doentes. Alguns investigadores defendem que as alterações que se verificam no sistema nervoso central, relacionadas com a dor, são primárias, autónomas, a causa primeira da doença. Sucede que estas alterações estão no centro da salience network, também envolvidas na modulação e na governação das emoções”, destaca Pereira da Silva.
Mas entre os próprios doentes não é fácil de aceitar, na consulta deste reumatologista, que possa haver aqui implicadas questões de saúde mental. “As pessoas estão, em geral, disponíveis para aceitar uma dor passageira ou uma indisposição, quer sejam provocadas por um fator psicológico ou de stresse. Já é mais difícil aceitar-se a ideia de que se vive num stresse mais ou menos permanente porque tudo incomoda, tudo preocupa. Isso já remete para a maneira de ser da pessoa e menos para a circunstância pontual”, adianta o médico.
“Esta sensação de culpa pessoal faz com que, penso eu, os próprios doentes tenham tanta dificuldade em aceitar o modelo no início, e isso é um dos maiores obstáculos a que possam controlar e vencer a fibromialgia. É necessário perceber que é tão natural ser tenso e preocupado como diabético ou hipertenso – é a roleta genética”, descansa.
E mais: “A depressão e a tristeza são consequência de um défice de serotonina, tal como a diabetes é muitas vezes devida à falta de insulina. Nenhum médico dirá a um diabético: ‘Você tem falta de insulina, faça favor de produzir mais’.”
Florbela não se achava merecedora, diz agora. Cuidava de todos, mas não de si. Duríssimo o caminho que fez… “A culpa que senti quando me pus a mim primeiro! Mas precisava!”, desabafa.
Meteu uma licença sem vencimento e viajou para África, mas não era ali que estava a solução. Quando recomeçava o trabalho, tinha uma recaída. Trocou então a cidade pelo campo. Deixou a capital e foi para uma aldeia com 60 habitantes. “A fibromialgia foi e é uma bênção na minha vida. Descobri quem sou e obrigou-me a parar. A doença está aqui. É como um grilo falante. Quando estou prestes a calçar um sapatinho que me aperta, o grilo diz: ‘Olha lá, que isso não te serve’”, ri-se Florbela, já livre de medicação.
Nem todos precisarão de mudanças tão extremas, dependendo do controlo dos fatores de stresse. E há aqui um ciclo, porque a própria doença é um imenso fator de stresse. Muitas vezes incompreendida entre a família e os amigos, quanto mais no local de trabalho.
“Este sofrimento, já de si notável, é muitíssimo agravado pela invalidação ao nível da família, do trabalho, dos serviços sociais ou dos serviços de saúde. Estes doentes têm também extrema dificuldade em ver a sua incapacidade reconhecida, sob a forma de baixa médica ou reforma por incapacidade, porque o médico não tem prova do sofrimento nem de doença que o justifique. As análises são todas normais, as radiografias também”, refere José António Pereira da Silva.
Dias bons
O “sapato” que apertava o pé de Sílvia Lopes, 42 anos, era o trabalho numa clínica dentária, onde estava há 21 anos. “Não o trabalho, mas o ambiente”, corrige. “De vez em quando tinha dores, mas o que mais me incomodava era o cansaço, passava a vida a tomar vitaminas para ter energia. Mas deixaram de fazer efeito. Depois, começaram as dores a sério em todo o corpo”, conta.
Tanto a fisioterapeuta como o osteopata lhe falaram da fibromialgia e aconselharam-na a procurar um reumatologista. “Comecei a ler sobre a doença e identifiquei-me logo. Quando o médico me deu o diagnóstico, depois de ter feito todos os exames, não fiquei surpreendida”, diz.
O que a surpreendeu foi o que o médico lhe disse ‒ para ir para casa pensar nos seus dias e no que de bom encontrava neles. “Na verdade, não encontrei nada de bom nos meus dias. Chegava a casa do trabalho e nem jantava, ia direta para a cama. Custava-me levantar de manhã. Decidi ir logo ao psicólogo”, desabafa.
Foi como se a doença tivesse sido um enorme abrir de olhos. “As outras pessoas achavam que eu era assim, que era da minha maneira de ser nunca querer ir a lado nenhum, nunca estar nos convívios, nunca me apetecer sair… Mas eu não achava normal estar sempre cansada.”
Durante os períodos de baixa melhorava, saboreava as pequenas coisas, os banhos, a comida, escrevia sobre os seus dias. Mas, logo no primeiro dia de regresso ao trabalho, voltava a piorar. A conclusão também não demorou muito: aquele emprego não lhe estava a fazer bem. Despediu-se.
E o medo transformou-se em oportunidade, veio uma, logo a seguir outra, vai progredindo. Faz quadros com pedras, que vende online, tem um part-time num ATL, adora trabalhar com crianças, dar mimos, pegar-lhes ao colo. Tem pressa de se dizer curada, mas só passaram alguns meses e ainda receia largar a medicação.
Além dos medicamentos, Pereira da Silva prescreve: “Mais prazer e menos dever, mais satisfação, menos obrigação, mais você e menos os outros.”
Conhecer a doença
Só no final dos anos 70, a Organização Mundial da Saúde reconheceu a fibromialgia como doença, embora há muito houvesse relatos dos seus sintomas
Como se caracteriza
O sintoma principal consiste na dor generalizada, que afeta múltiplas áreas do corpo, não necessariamente ao mesmo tempo, ao longo dos últimos três meses (para se chegar a um diagnóstico). De acordo com os critérios mais recentes, basta que a isso se junte ou uma perturbação do sono ou fadiga, moderada ou grave. Mas, normalmente, há mais sintomas, como enxaquecas, cólon irritável, bexiga irritável com sensação de infeção urinária frequente, dor durante a relação sexual, sensação de queimação na pele, que aumenta ao toque, aperto no peito, que se traduz em falta de ar, e é também frequente que os doentes tenham, no passado ou no presente, depressão, ansiedade ou crises de pânico.
Qual a incidência
Afeta cerca de 4% da população adulta feminina (e menos de 1% da masculina).
Qual o tratamento
É considerada uma doença crónica, cujos sintomas podem ser aliviados com medicamentos para as dores, antidepressivos e relaxantes musculares. Recomenda-se também exercício físico, banhos quentes e uma rotina de sono saudável.
(Artigo publicado originalmente na VISÃO Saúde nº 29 de abril/maio de 2023)