No final de cada email enviado, depois da assinatura, há uma máxima que gosta de partilhar com os destinatários: “Nenhuma doença é tão rara que não mereça que se descubra a sua causa e se encontre o tratamento!” Manuela Grazina, investigadora do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, especializada em genética bioquímica, genética humana, neurociências e medicina de precisão (farmacogenómica), dedica parte do seu tempo à investigação de condições que afetam pequeníssimas franjas da população, mas que podem ser – e normalmente são – altamente incapacitantes para quem delas sofre. O conhecimento dos mecanismos de ação do cérebro habilita-a, por outro lado, no vasto campo da saúde mental. E, não menos relevante, a formação em bioquímica e genética oferece-lhe uma perspetiva abrangente sobre o funcionamento do nosso organismo.
Tudo somado, a também professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra foi alimentando – talvez ao longo dos últimos dez anos, diz – a ideia de criar uma oportunidade para ajudar doentes e familiares a lidarem com as doenças, nas suas mais variadas dificuldades. E assim arrancaram, em janeiro deste ano, numa parceria entre a universidade e o Centro Cirúrgico de Coimbra (uma unidade de medicina privada), as sessões de mentoria científica, uma espécie de complemento científico ao acompanhamento clínico dos pacientes.
A iniciativa, que Manuela Grazina acredita ser pioneira no mundo (“de acordo com as informações disponíveis”, ressalva), serve de pretexto a esta conversa com a VISÃO, na qual se fala de doenças genéticas e raras, depressão, bipolaridade, síndrome de Asperger, cancro e outras mais, dentro da mesma lógica que preside à mentoria: a de esclarecer para capacitar, através de ciência ao alcance de todos, doentes e familiares a decidirem melhor.
Qual o foco destas sessões de mentoria científica?
O maior desafio de um clínico, e preparo os meus alunos para estarem alerta a esta questão, é a adesão do doente ao tratamento. Mesmo sendo um médico extraordinário, fazendo os exames necessários, tendo a maior precisão no diagnóstico, quando as pessoas não entendem a doença que têm e o benefício da medicação, por vezes nem a tomam. Pensam que um dia hão de morrer como toda a gente e continuam a fazer tudo igual, arriscando um enfarte, por exemplo. Estas sessões podem servir para esclarecer aquilo que, em muitas consultas, o médico não tem tempo ou possibilidade de fazer.
Há também a questão dos produtos naturais, dos chás, do álcool, que podem ser um perigo pela sua interação com os medicamentos. Tudo o que entra no nosso metabolismo mistura-se, por assim dizer, e conseguimos explicar às pessoas, numa linguagem acessível, porque é que não podem fazer determinadas misturas e quais as consequências para a saúde se o fizerem.
Outro foco importante é no esclarecimento de um diagnóstico quando ele ainda está em investigação. Imagine-se uma mulher a rondar os 50 anos que começa a dormir mal, não se sente bem e só lhe apetece chorar. Nem sabe a que médico há de ir. Ou então vai ao psiquiatra, uma vez que tem alterações do humor e do sono. O psiquiatra faz o seu papel, e o mais natural seria prescrever um antidepressivo e um regulador do sono. Mas a questão pode ser hormonal e então é importante ver se a pessoa está na idade da menopausa e se poderá ser esse o problema. Nestas sessões, temos uma abordagem biomolecular. Tentamos avaliar as várias hipóteses de forma a encaminharmos para a especialidade com maior probabilidade de poder ajudar a identificar o problema.
Há ainda situações em que as pessoas não sabem organizar a informação a partilhar com o médico, ou desvalorizam informações que acabam por nem referir e que poderiam ser cruciais para o diagnóstico ou para o tratamento. Muitas vezes, a demora no diagnóstico tem a ver com isso. Se levarem à consulta a informação relevante organizada, vão aumentar a precisão do diagnóstico. Noutras vezes, a pessoa já conhece o diagnóstico, mas não o compreende bem, assim como a família. Imagine-se que é uma doença mitocondrial, com alterações no genoma mitocondrial, que é herdado da mãe. Essa mãe sente-se culpada pela doença do filho e, muitas vezes, leva ao abandono da família por parte do pai. É terrível e é necessário desmistificar tudo isto.
O que é uma doença mitocondrial e porque motiva ruturas familiares?
Costumo dizer que são as avarias na fábrica da energia. As mitocôndrias estão dentro das células e libertam energia para que tudo possa acontecer no nosso corpo. Para todas as peças dessa fábrica funcionarem bem, é necessário a presença no ADN do genoma da mitocôndria, que é herdado apenas da mãe. Isto leva à interpretação errada, por falta de conhecimento na população, de que a culpa é dela quando uma destas doenças se manifesta numa criança. Não é assim e temos de combater esta iliteracia em ciência e saúde que leva, muitas vezes, ao desmembramento de famílias só porque ouvem dizer que o ADN mitocondrial é herdado da mãe. Essa parte herdada da mãe não funciona sem outros genes que são herdados tanto da mãe como do pai. Além disso, mesmo que seja a mãe a transmitir, obviamente que não é da responsabilidade de ninguém a transmissão de uma alteração genética. Nenhum progenitor escolhe transmitir o que está errado, ninguém controla isso. Na maior parte das vezes, é o pai que se vai embora e fica uma mãe, desesperada, sozinha com a filha ou o filho para cuidar, por vezes mais do que um, sendo que muitas vezes demora anos até se conseguir o diagnóstico definitivo. Ser cuidador 24 horas por dia é esgotante, as pessoas quase colapsam e, por isso, desmistificar estes casos é uma vertente importantíssima destas sessões de mentoria.
São doenças altamente incapacitantes?
São doenças difíceis de gerir porque são muito incapacitantes, principalmente as que se manifestam nas crianças. Muitas vezes, levam à morte antes dos 10 anos de idade. Podem afetar o coração, o olho, o ouvido, o cérebro, os músculos, os rins, o fígado e, em muitos casos, vários órgãos ao mesmo tempo. Implicam uma carga muito grande para os cuidadores e o país em geral, que ainda não consegue dar o apoio que estas famílias precisam. Nos adultos, afetam mais a visão ou o sistema neuromuscular. São muitas as doenças e todas raras, uma delas chama-se doença de Leigh [um tipo de encefalopatia mitocondrial]. Na nossa equipa, temos um grande foco na neuropatia ótica hereditária de Leber [ou LHON], que normalmente dá só cegueira, porque as mitocôndrias afetadas são as que estão nas células ganglionares da retina, que fazem parte do nervo ótico e participam no processamento da imagem até ao cérebro para produzir o efeito da visão. Foi sempre muito intrigante para mim esta doença porque, de facto, resulta de alterações genéticas herdadas da mãe, mas nem todas as pessoas da família desenvolvem a doença. Ou seja, há muitos portadores da alteração genética e nem todos apresentam sintomas. É uma doença prioritária para se estudar porque é muito promissora quanto à possibilidade de intervenção, uma vez que afeta apenas o olho, o que é outro mistério. Porquê só aquelas células? Estima-se que haja entre 200 e 300 doentes em Portugal com esta doença. Acredito que poderá haver mais, perdidos no sistema.
É transmissível apenas através de um erro genético hereditário, portanto?
No caso da LHON, sim. Mas em muitos casos, talvez na maioria destas doenças, a alteração genética responsável pela doença ainda não foi identificada. Um dos nossos grandes objetivos é conseguir identificar as causas genéticas destas doenças e desvendar os mecanismos pelos quais provocam a doença.
Os doentes de LHON são seguidos em que especialidades?
Normalmente, nos serviços de oftalmologia (subespecialidade de neuroftalmologia), de neurologia ou ambos. Noutras doenças podem ser seguidos em neurologia, cardiologia, mas a maioria vai a consultas de doenças metabólicas. No entanto, até chegarem lá podem andar perdidos, digamos assim, sem se conseguir identificar a causa dos sintomas. Há vários casos em que a função bioquímica está alterada – conseguimos medir o défice de produção de energia das células -, mas não se percebe qual o tecido que está mais afetado. Podem ser necessários exames imagiológicos ao cérebro, biópsias dos músculos, avaliações genéticas e, mesmo assim, às vezes, não se encontra nada. Isso não quer dizer que não haja lá nada, mas o que está errado ainda não foi identificado, não há nada nas plataformas de referência que nos diga que aquilo é um erro. Em suma, é uma odisseia.
A mentoria também passa por ajudar a lidar com a doença?
É muito importante. Um exemplo em que pode ser muito útil é na área das dependências. Quando explico os mecanismos da dependência, por vezes até em escolas, não vou dizer a ninguém que não se drogue ou que não beba álcool. O que posso fazer, e isto pode parecer muito pretensioso, é salvar vidas através do conhecimento. Ao explicar como as drogas e o abuso do álcool interagem com o cérebro e destroem a capacidade de tomar decisões. Não é toxicodependente quem quer. Quem quer experimenta, mas a toxicodependência é uma espécie de avaria da tomada de decisão, ou da força de vontade. Porque há uma alteração dos circuitos a nível cerebral e uma destruição de alguns desses circuitos, nomeadamente dos que ligam a impulsão à capacidade de decidir e de travar um impulso. Em termos de mecanismo, é um pouco o que se passa também com a dependência da internet e dos videojogos, em que os jovens se refugiam, sobretudo, quando há uma constelação de fatores negativos que os empurra para aquele prazer como compensação emocional, muitas vezes para combater a ansiedade que frequentemente sentem. O circuito desregula da mesma forma, a diferença é que os neurónios não morrem como na exposição ao álcool ou às drogas de abuso. É importante os familiares perceberem que são doenças cerebrais e que é preciso tratá-las como tal.
E no caso das doenças mentais como a depressão ou a doença bipolar?
Por vezes, as pessoas não vão ao médico quando há problemas do foro mental. “Não estou maluco”, dizem. Infelizmente, ainda há este estigma. A depressão e a doença bipolar são dois exemplos cruciais, porque a nível social há toda uma desvalorização e uma discriminação negativa. Se alguém se queixa que não é capaz, que não está bem, que não tem energia para sair de casa, para tomar banho ou para fazer seja o que for, como acontece na depressão major, por exemplo, é para levar a sério. Se a pessoa não faz é porque não consegue. Ninguém se queixa só para aborrecer alguém. “Ah, porque é mimada, ah porque tem tudo e não sabe o que fazer à vida.” Não. Nós, em termos biológicos, estamos capacitados para fazer, para andar, para ir à procura do que nos possa dar prazer. Se isto não está a acontecer, é anómalo. E é motivo para pedir ajuda. O maior erro que se pode cometer é desvalorizar uma coisa destas. Há circuitos que não estão a funcionar, e a depressão é um caso importantíssimo a esclarecer nestas sessões. Por exemplo, pessoas que vivam sob stresse excessivo têm um risco acrescido. Porque a base da depressão pode ser uma neuroinflamação que muitas vezes vem do excesso de stresse. Isto é motivo para que, na terapia, se veja a questão de outra forma, com muito maior abrangência. Não tratar só o circuito neuroquímico em si, mas também esta neuroinflamação que vai estar sempre a bombardear, entre aspas, os neurónios, tornando-os mais vulneráveis. Muitas vezes, os fármacos podem não ser eficazes porque não estamos a tratar a causa propriamente dita. Noutras, isso acontece porque há pessoas com variantes genéticas que as impedem de interagir de forma eficaz com um determinado fármaco.
Nestas doenças, é comum não se acertar na medicação logo à primeira tentativa.
Exatamente. A mentoria científica vai ajudar a aumentar a precisão.
A perturbação do sono é um sintoma decisivo na avaliação destas doenças?
Completamente. Até nalguns casos de autismo ligeiro, que agora são cada vez mais frequentes, também porque estamos mais atentos e se investigam mais. É o caso da síndrome de Asperger, muitas vezes associada a sobredotação e que, por causa disso, fica mais ou menos disfarçada. Algumas supostas manias são consideradas traços de personalidade e ficam assim classificadas, mas não são manias. São traços determinados por uma condição. No caso de Asperger, há uma pequena avaria nos circuitos da gestão das emoções que deve ser levada a sério. Se calhar, se a pessoa tiver uma vida calma, sem grande stresse e com muitos afectos que ajudam os circuitos a funcionar melhor por causa do balanço neuroquímico, pode quase nem se notar. Mas, em situações de grande stresse emocional, ele emerge. E essa alteração nos circuitos pode dar origem a episódios de automutilação e até de agressividade. Não é fruto da fase da adolescência nem da falta de educação. Esta literacia é muito importante no apoio a esta minoria, porque ajuda as famílias a compreender o problema e a lidar melhor com ele. Lidar com o desconhecido é muito complicado.
Até que ponto o conhecimento por parte dos familiares dos mecanismos das doenças mentais pode ajudar a aliviar o fardo de quem sofre com elas?
É crucial. Porque o paciente não tem culpa. Alguns têm maior risco genético, depois há mulheres submetidas a um stresse tal durante a gravidez que aumenta o risco de a criança vir a ter perturbações do foro psíquico e mental na idade adulta ou na adolescência, assim como défices de nutrientes fundamentais para o neurodesenvolvimento também podem ter consequências mais tarde. Ainda há muito a fazer no acompanhamento das mulheres grávidas. Apesar de já se fazer muito, a ciência pode ajudar ainda mais para evitar problemas de saúde mental mais à frente. E a mentoria científica pode fazer toda a diferença.
O stresse é um dos maiores inimigos da saúde mental?
Na atualidade, sem dúvida. Temos de introduzir ações corretivas, já passou o tempo dos cartazes sobre saúde mental. Temos de rever a forma como funcionamos. Promover o bem-estar no local de trabalho, com a introdução de pausas obrigatórias, por exemplo. A pessoa tem que ir à rua ver o Sol. Nem que seja uma vez por mês, fazer um passeio organizado, porque não uma visita temática, conhecer um monumento? Com melhor saúde mental, vamos ter mais produtividade. Se estamos sob grande stresse, aumenta o nível de cortisol, a hormona do stresse, que é um grande indutor de inflamação, particularmente ao nível do cérebro, mas que afeta todo o organismo. As articulações, por exemplo, são alvos preferenciais, e aumenta até o risco de doenças autoimunes e de dor crónica, que é altamente incapacitante.
Há pouco acabou por não abordar a doença bipolar…
É bastante frequente ser menosprezada. Ainda por cima, uma doença com tratamento. Causa um sofrimento enorme nas famílias. A pessoa começa por ter alterações de comportamento, fases muito depressivas ou fases eufóricas, com alteração do padrão de sono. A privação de sono faz com que as vias cerebrais da recompensa, essenciais para a gestão das emoções e do bem-estar, fiquem desreguladas, e por isso o sono é tão importante. A alimentação também, porque é a ela que vamos buscar a matéria-prima para formar os neurotransmissores que fazem todo o circuito funcionar. E depois há pessoas que têm riscos genéticos. Há familiares que me dizem que não aguentam viver com alguém bipolar, mas, felizmente, temos profissionais da área da psiquiatria que identificam o problema com grande precisão e existem medicamentos, os chamados estabilizadores de humor, que ajudam a pessoa a recuperar o equilíbrio e a fazer uma vida normal. Há que não ter medo de ir ao psiquiatra. O psiquiatra não é para malucos, é para ajudar as pessoas a terem a possibilidade de corrigir alguns problemas. Obviamente que nem todas as pessoas vão responder da mesma forma aos fármacos e, se houver de repente uma situação de elevado stresse, ou um trauma, ela pode desencadear sintomas adicionais, mesmo tomando a medicação que antes estava a funcionar bem. Por isso, é preciso um acompanhamento contínuo. Não é tomar a medicação e depois nunca mais ir ao médico, nem pensar. E é preciso um apoio também à família para que esta compreenda e possa ter um conjunto de estratégias de atuação, porque pode ser muito difícil. Mais uma vez, a mentoria científica é de grande relevância no apoio à família.
Em casos de cancro, como é que pode ser útil a doentes e familiares?
É uma doença de proliferação. As células ficam baralhadas e começam a proliferar quando deviam estar sossegadas. Isso pode acontecer devido a avarias nos guardiões das células, como lhes chamo. Há várias formas de cancro que são genéticas e há outras que são induzidas por produtos que consumimos, aos quais estamos expostos ou mesmo por radiação. Imaginemos um caso de uma pessoa ruiva, com muitos sinais na pele, que se expõe muito à luz solar. Já sabemos que há aí uma probabilidade de associação. Normalmente, quando estamos expostos à radiação ultravioleta, sofremos quebras no nosso ADN e isso é um risco muito grande para os nossos guardiões celulares, que podem ficar afetados e deixarem de exercer o seu papel de guardiões. Na maioria dos casos, temos reparadores que vão lá reparar essa lesão causada pela radiação ultravioleta, mas sabemos que há pessoas, como as que têm a pele muito clara e com muitos sinais, com alguns défices nessa capacidade de reparação. O seu risco para cancro de pele é muito maior. Isto é só um exemplo de muitos, para dizer que temos que fazer alguma reflexão sobre os nossos hábitos de vida, ajustados à nossa individualidade. Outro exemplo é a alimentação, que pode conter substâncias potencialmente perigosas, sobretudo porque alguns de nós não as conseguem metabolizar para elas serem eliminadas do organismo. Ou a toxicidade da combustão do tabaco, associada ao cancro do pulmão. Todo este conhecimento pode ajudar as pessoas a fazerem melhores opções de vida. É isto a mentoria científica.
O risco associado ao tabaco eletrónico é muito menor?
Nos estudos científicos, o que tem sido demonstrado é que há uma redução muito significativa da percentagem do dano associada ao tabaco aquecido em relação ao cigarro. Dentro da liberdade de escolha de fumar, se a pessoa puder optar pela versão electrónica, na qual o processo da combustão fica mitigado, o risco é muitíssimo menor. Esta literacia é muito importante.
As suas sessões de mentoria científica são realizadas no privado. O SNS deveria disponibilizar este tipo de serviço?
Tenho esperança que sim. Eu iria até mais longe. A medicina do futuro é aquela que integrará, numa equipa multidisciplinar, além dos clínicos e outros profissionais de saúde, um mentor científico.